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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


sábado, 10 de agosto de 2013

Bloqueio Mental

   Não imaginei que a médica seria tão jovem. Não pude deixar de pensar nisto ao ver a garota à minha frente. Difícil acreditar que era uma pesquisadora conceituada. Ela sorriu quando entrei em seu consultório, e, com um gesto, indicou para eu sentar no sofá à sua frente.
   Também não imaginei que seria tão bonita.
   Ela não chegou a se levantar e apertar minha mão, mas isto não era falta de educação como seria quando eu era jovem. Depois das duas grandes epidemias de gripe, alguns hábitos foram mudando no mundo. De todo modo, seu sorriso era simpático.
   - Gostaria de uma água, ou um chá? - Ela ofereceu, mas eu recusei tentando transmitir simpatia também. Seu sorriso era contagioso. Após mais algumas amenidades, ela foi direto ao ponto.
   - Diga-me então, Senhor Jerry,  em que posso ajudá-lo?
   Eu hesitei um instante, depois de sorrir novamente e pedir para ela me chamar apenas de Jerry. Será que, depois de tanto tempo, ainda valia a pena? Não seria melhor deixar o passado enterrado?
   - Minhas memorias, de quando eu era criança, eu quero recuperar elas. Eu preciso.
   - De toda sua infância, ou de alguns momentos mais marcantes, Jerry? Se quisermos recuperar muitas lembranças, demoraremos algumas seções.
   - Não, não. Não quero apenas lembrar momentos da infância É uma única memoria, que ficou bloqueada por quase quarenta anos. Eu fiz de tudo, mas nunca consegui lembrar o que ocorreu em um determinado dia, em 2015.
   - Foi um evento traumático?
   Eu acenei que sim, sem abrir minha boca. Comecei a suar frio.
   - Foi a noite em que meus pais morreram. Assassinados. Minha vida acabou naquele dia - Lágrimas escorriam por trás de meus óculos escuros, descendo pelo meu rosto, enquanto eu prosseguia em meu relato - Eu só lembro da polícia chegando, me encontrando encolhido na sala, meus pais no quarto, mortos. Nunca encontraram o assassino, mas eu tenho certeza que o vi, só não consigo lembrar.
   Eu prossegui, enquanto as lágrimas seguiam livremente, envergonhado comigo mesmo, mas incapaz de contê-las - desde aquele dia eu me isolei de todos, mal saio de casa faz quarenta anos, perdi peso, perdi todo meu cabelo - uma vez eu vi uma foto de sobreviventes de campos de concentração da segunda grande guerra. Eu pesava menos de quarenta quilos, e poderia facilmente ser confundido com um deles.
   Ela me deixou falando, desabafando. Contei que minha sorte foi que minha família deixou dinheiro suficiente para me sustentar, e que eu fazia alguns trabalhos a distância, pela Internet, mas que não saía mais de casa, que tinha acessos de pânico no meio de muitas pessoas. Por isto também que vim no último horário dela, às oito da noite, quando não havia mais movimento.
   - E você já tentou lembrar daquele dia, já fez algum tratamento?
   Eu acenei que sim. Nem hipnose funcionou, eu expliquei.
   - O que fazemos aqui não é hipnose, Jerry. Você vai tomar um composto que afeta diretamente seu cérebro, que irá reativar o acesso a suas memorias. Meu papel é apenas de conduzir sua consciência para as memorias corretas. Mas há uma coisa que eu preciso que você entenda, antes de começarmos.
   Eu pedi para ela explicar, dizendo que estava prestando atenção. Já estava um pouco melhor. Era impressionante que mesmo quarenta anos depois, eu ainda ficava tão mal por apenas mencionar aquele dia.
   - Esquecermos eventos traumáticos é uma ação de nosso cérebro para nos protegermos, Jerry. Quando recuperarmos suas memorias nós não estaremos apenas descobrindo o que houve, estaremos fazendo com que suas lembranças voltem a estar tão vivas quanto no dia que aconteceram, e desta vez não haverá como você simplesmente bloqueá-las novamente. Entende o que eu digo, os riscos que isto vai significar para você?
   Eu concordei, e ela me fez assinar um termo de responsabilidade cheio de cláusulas, lendo uma a uma e explicando tudo em detalhes. Basicamente a responsabilidade seria exclusivamente minha por qualquer psicose ou dano mental que eu viesse a ter. Não importava. Eu tinha que saber o que havia acontecido naquela noite.
    - É só isto - eu perguntei quando ela me mostrou a pílula. Uma simples pílula iria trazer de volta a lembrança que eu esqueci por 40 anos?
   Eu engoli com um copo de água e me deitei no divã, enquanto ela sentou do meu lado.
   - O que vou fazer agora não é hipnose, Jerry, nem uma sessão de análise. O que vou fazer é ajudar a conduzir sua consciência para aquela noite, para que o medicamento atue sobre a estrutura de neurônios correta, e monitorar seus sinas vitais. Certo? Agora feche os olhos e acompanhe o que eu falo. Tente ficar o mais relaxado possível.
   Foi incrível. A medida que ela falava, me perguntando sobre aquele dia, era como se eu estivesse viajando no tempo, revivendo minha infância. Ela havia dito que era um efeito da droga, que as memorias pareceriam tão vivas que seria como se estivessem acontecendo neste momento.
   Eu não estava lembrando dos meus doze anos. Eu tinha doze anos novamente. Era noite, e eu acordei me sentindo enjoado e com uma terrível dor no estômago. Era uma sensação que eu viria a ter muitas vezes nos anos seguintes, mas naquele dia era algo novo, diferente e mais agoniante que qualquer sensação que já tivesse sentido.
   Eu levantei da cama, sai do quarto ainda no escuro, e caminhei até o quarto dos meus pais. Uma parte de mim dizia para não entrar lá, para voltar para cama, como se eu estivesse mesmo no passado, como se não fosse apenas uma lembrança de algo que já aconteceu, mas a voz da médica era insistente. - diga-me o que está acontecendo, Jerry, diga-me o que você vai ver dentro do quarto. Isto foi há quarenta anos, seja o que for, não pode machuca-lo mais.
   Eu entrei no quarto, esperando ver meus pais mortos, um assassino sobre eles, cortando suas gargantas, mas não havia nada de anormal. Eles dormiam tranquilos, pude ver quando acendi a luz. A súbita claridade fez meus olhos arderem.
   - Querido, o que houve - como era bom ouvir a voz de minha mãe, novamente, depois de tanto tempo, ver seu rosto tal como estava da última vez que a vi. Meu olhos se encheram novamente de lágrimas, a lembrança era tão real.
   - E o que aconteceu depois? - a voz da médica penetrando no mundo das minhas lembranças.
   - Estou me sentindo mal - eu havia dito, com uma voz embargada, enquanto segurava e comprimia minha barriga com a mão. E havia, então, me aproximado de minha mãe, que me abraçou.
   Neste instante a memoria se desfez e eu abri os olhos, gritando:
   - Eu não quero lembrar!
   - Jerry, você está me machucando. Solte meu braço!
   Para minha surpresa, eu estava segurando o pulso da minha médica, com força. Tentei soltar, mas não consegui abrir minha mão.
   - Eu não quero lembrar. Eu não quero saber o que aconteceu!
   - É tarde demais, Jerry, eu lhe avisei. Os nanocompostos já acharam a estrutura neural certa. Você vai lembrar, mesmo que não queira. Não temos como interromper o processo.
   O que ela falava era verdade. Eu podia ver a cena diante de mim, se reconstruindo novamente, mesmo de olhos abertos, mesmo sem ela dizer nada. Minha mãe estava me abraçando. Meu sentidos estavam multiplicados por mil. A sensação do abraço, sua voz doce, seu cheiro. Principalmente seu cheiro, que parecia penetrar e dominar todo meu corpo, enquanto minha boca se aproximava de seu pescoço. Meu corpo sabia o que eu precisava, mesmo que eu próprio não soubesse.
   - Você não está entendendo - eu disse, enquanto o horror tomava conta de mim, as imagens em minha mente avançando sua trágica  sequência - Fui eu que a matei. Fui eu que matei os dois. Você não podia ter despertado estas memorias.
   - Jerry, isto foi há quarenta anos. Você era uma criança. Você tem que aceitar que isto é passado, terá que aprender a se perdoar. - Ao mesmo tempo que falava, tentando me acalmar, ela continuava tentando soltar seu braço. Eu senti pena por ela, mas como um pouco de pena poderia me parar? Eu mal a conhecia, que importância ela tinha perto de minha mãe, perto de meu pai?
   - Não era a morte de meus pais que eu não podia ter lembrado - eu falei, enquanto aproximava seu pulso de meu rosto - não foi isto que eu tinha que ter esquecido para sempre.
   A fome era agora avassaladora, como foi durante a maior parte destes quarenta anos, mas agora não havia nada para deter-me, nenhum bloqueio. Em minhas lembranças, meu pai estava acordando, gritando, horrorizado, mas eu estava feliz, tão feliz. O líquido inundando meus sentidos, minha alma, me trazendo uma sensação que nunca antes, e nunca depois daquela noite, voltaria a sentir.
   Até agora.
   Enquanto minha língua passava suavemente pelo seu pulso, sentindo o calor que passava por dentro das veias, eu falei a última coisa que minha médica ouviria.
   - Você não devia ter me feito lembrar quão doce era o gosto de sangue.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Linguagem de Máquina /8 - Final

  Foi o mais longo e cansativo mês da vida de Rubens. Ele trabalhava freneticamente, dia e noite, ao mesmo tempo fazendo de tudo para que a criatura não percebesse o que ele estava realmente criando. O que ele aprendeu neste período era indescritível, uma nova maneira de desenvolver sistemas, literalmente uma nova forma de pensar.
   Ele já sabia o que havia de errado com as simulações, o porquê delas continuamente entrarem em uma espécie de loop. Na verdade era menos um erro e mais uma questão de ajuste fino, de alterações sutis no fluxo de dados entre as diferentes partes da estrutura neural. O mais complicado era que ele não podia alterar a estrutura em si, só podia influenciá-la, como se fosse um maestro dando instruções para incontáveis instrumentos.
   Já sabotá-las era mais complexo, especialmente porque ele não podia ser muito óbvio. No final, o próprio ataque epilético de Vanessa foi o que lhe deu a ideia. Ele iria fazer as inteligências artificiais terem uma reação equivalente, parecida com o loop que ele vinha tentando resolver, mas mil vezes mais forte. E, principalmente, eterno. As redes neurais afetadas nunca sairiam do loop.
   O dia que ele liberou sua última versão do sistema, com um controlador para iniciar a sabotagem em alguns minutos, foi o mais tenso de todos. Agora era só uma questão de esperar.
   - Você está tenso. Sua pulsação está acelerada - a voz falou no alto-falante de seu escritório. Era tão óbvio agora, como ele podia ter imaginado que era uma equipe de pessoas, que era sequer um ser humano a falar com ele.
   - Não é nada - faltavam minutos agora. Ele só precisava não deixar a criatura desconfiada. Criatura ou como quisesse chamá-la. Nenhum governo do mundo conseguiria criar um software tão sofisticado, capaz de criar inteligências artificiais, alterar vídeos de pessoas em tempo real. Não, era uma máquina por trás de tudo, uma máquina inteligente, e ele estava ajudando-a a se tornar mais parecida com um ser humano, ou a criar um exército de duplicatas, o que fosse.
   Mas ia terminar agora. Neste instante.
   Foi o completo anticlímax. De repente, a tela de seu terminal ficou escura.
   - Ola? Alguém aí?
   Nenhuma resposta.
   - Peguei você. Eu estava certo, não estava? Era uma inteligência artificial que estava por trás de tudo isto. E agora você está em um loop eterno. Não há como tirá-lo dele, nunca.
   Rubens se levantou e foi até a sala, encontrar Vanessa. Ele iria levá-la com ele, descobrir quem era ela e como foi trazida até ali. Ele iria curá-la do que quer que tivesse sido feito com ela, e eles ficariam juntos. Provavelmente a criatura havia conseguido afetar a mente dela de algum jeito, através de sua conexão neural, mas ele ia fazer de tudo para recuperá-la. Estes meses presos nas mãos de um software inteligente ficariam para trás.
   Vanessa o esperava na sala.
   No chão.
   Em convulsões.
   Ele correu para ela e ficou segurando sua cabeça para que não se machucasse. Já sabia que tentar imobilizá-la ou colocar alguma coisa em sua boca era tolice. Ele só precisava evitar que ela se machucasse e aguardar que as convulsões passassem.
   Mas elas não passaram.
   E, lentamente, a última peça que faltava em seu quebra-cabeças, começou a se encaixar no lugar.
   O sistema que ele ajudou a desenvolver, que manipulava uma rede neural extremamente complexa, que às vezes entrava em loop...
   Vanessa tendo convulsões quando ele perguntou sobre seu passado, confrontando sua mente com a programação enviada pelo seu acesso neural, programação que ele ajudou a desenvolver...
   E que ele sabotou para criar um loop infinito.
   - Vanessa! Vanessa - ele repetiu.
   E repetiu.
   Mas ele sabia que ela não iria ouvi-lo mais.


fim

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Último Grande General do Império Humano

   Hans Sebastian Kahn, último general do império humano, e certamente o maior general de todo a história do terceiro milênio, estava morrendo. Ele começou a morrer no exato instante que o campo de estase que mantinha seu corpo vivo foi desligado.
   Lekster, o lagarto, se perguntou se não deveria ter insistido para manterem o campo ligado, mas depois encolheu os ombros, em um gesto que aprendeu com os humanos que o criaram desde que nasceu. Melhor assim, o general Kahn merecia uma morte digna, era hora dele descansar. Hora de Lekster se despedir.
   - Lekster, é você? - a voz era quase um murmúrio, mas os olhos do general estavam fixos no lagarto. As drogas injetadas em seu corpo aliviavam a dor sem fazê-lo perder a lucidez. Lekster poderia se despedir pela última vez de seu general.
   - Sim, general, sou eu. Sempre aqui para servi-lo.
   O general fechou os olhos por um instante, suspirou, e então olhou novamente para Lekster, e esboçou um sorriso. - Nós conseguimos, então.
   - Sim, senhor, nós conseguimos. A Terra está salva. Como o senhor previu, os Itrans vieram nos ajudar. Trouxeram toda sua frota.
   - Eu não lhe disse, Lekster? Eu não lhe disse? - e o general começou a rir, até seu riso se tornar uma tosse, que terminou com sangue que ele guspiu no rosto do lagarto. Este fingiu nem perceber, o coração apertado por saber que não restava muito tempo, agora.
   - Conte-me como foi, Lekster, conte-me o que eu perdi.
   - Não há muito para contar, meu senhor. Fizemos o impossível. Na verdade, o senhor fez. Detivemos por quase 10 dias uma força mais de cem vezes superior a nossa.
   - Nós tínhamos que resistir, meu amigo, éramos a única coisa entre os Parddos e a destruição da Terra. A última frota que restou. Nós tínhamos que lutar até a última nave.
   - E foi o que fizemos meu general. Nossa nave foi a última a resistir. Os Itrans saíram do hiperespaço no momento que o torpedo nos atingiu. Eu não sei se o senhor chegou a vê-los no sensor.
   - Não - o general falou agora com uma voz mais fraca. Haviam lhe dito que ele não teria muito tempo, apenas as poderosas drogas injetadas ainda mantinham o general vivo - não, não vi, mas não importa. A única coisa que importa é que a Terra está salva.
   - Sim, meu general. A Terra está salva.
   - A Terra está salva - o general fechou os olhos, e Lekster, o único alienígena a jamais servir em uma nave de guerra humana, sabia que ele não voltaria a abri-los.
   - Ele se foi. - O médico Parddos se aproximou, vindo de trás do general, de fora de seu campo de visão.
   - Eu sei. Obrigado. Obrigado por deixá-lo descansar acreditando que os Itrans vieram, que sua última batalha não foi em vão.


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Linguagem de Máquina 7/8

   Rubens dividia todo seu tempo livre entre dois mistérios. Durante o dia, ele tentava descobrir que tipo de sistema estava ajudando a desenvolver. A noite, ele buscava uma forma de acessar a Internet diretamente. Ele tinha certeza que tudo que acessava era de alguma forma manipulado. Provavelmente, desde que ele foi mantido isolado nesta casa.
   Havia um terceiro mistério que ele havia desistido de resolver, pelo menos por enquanto: quem era Vanessa. Fazia uma semana desde que ela havia tido uma convulsão, quando ele perguntou sobre sua família, e só agora ela parecia estar voltando ao normal, pelo menos ao normal que ele estava acostumado a esperar dela.
   Felizmente, Rubens estava conseguindo algum progresso nas outras frentes. Em especial, agora ele tinha acesso a ambientes de simulação para testar o sistema, o que queria dizer que ele também conseguia entender o que estava sendo simulado. Como desconfiava, ele estava ajudando a desenvolver uma rede neural, só que não tinha ideia de quão sofisticada ela era até testá-la pela primeira vez.
   - Meu nome é João Silva - havia lhe respondido a primeira simulação. Nada que lhe chamasse a atenção, mas cada resposta vinha com detalhes mais e mais ricos - eu sou um funcionário público. Trabalho como administrador de redes - ele levou quase duas dezenas de perguntas até conseguir fazer a simulação começar a apresentar falhas nas respostas.
   A simulação atual era a terceira em sete dias, cada uma mais perfeita que a anterior, só que todas sempre apresentando o mesmo problema. Quando ele começa a fazer perguntas mais pessoais, que só um ser humano saberia responder, todas elas entravam em algum tipo de loop. Era exatamente a visualização do problema que ele havia percebido.
   - Não sei mais o que fazer - ele falou alto, a voz alterada pela frustração. Na verdade, foi apenas um desabafo, que ele não espera que fosse respondido.
   - Você está no caminho certo - veio a voz do alto-falante - os sintomas de perda de referência estão ficando menores e mais espaçados.
   - Eu já nem tenho certeza do que estou fazendo. Por que é tão importante que a simulação se pareça um ser humano nos mínimos detalhes? Ela já parece tão inteligente quanto uma pessoa, exceto quando a conversa se torna muito pessoal.
   - A simulação deve ser capaz de reagir como um ser humano em todas as situações de uma conversa real - foi a resposta.
   "Um espião". Um dos mistérios subitamente começou a fazer sentido. "Eles não estão apenas construindo uma rede neural que pense parecido com um ser humano, eles estão querendo algo que possa se passar por um ser humano de verdade". Certamente o governo americano poderia pensar em um cem número de utilidades para um sistema destes.
   Rubens trabalhou mais algumas horas no problema, parando apenas para comer e conversar um pouco com Vanessa. Sob certos aspectos, conversar com ela era tão frustante quanto conversar com as simulações.
   A noite, Rubens se voltou para seu segundo mistério. Como acessar a Internet e descobrir o que estava acontecendo no mundo de fora, sem que a informação passasse por nenhum filtro.
   No primeiro dia, Rubens havia se concentrado em acessar informações em vídeo. Por mais avançado que o governo americano fosse - ele não tinha mais a menor dúvida de que era quem estava por trás de tudo - eles não poderiam alterar todos os vídeos e noticiários da internet. No máximo conseguiriam bloqueá-los, mas alterar imagens e sons de pessoas falando em tempo real era algo muito além de qualquer tecnologia existente.
   Nos últimos dias ele começava a acreditar que era exatamente isto que estava acontecendo. Não havia como provar, mas era apenas uma sensação. Ele tinha um sentimento que o que passava na Internet não era real.
   No terceiro dia ele desconectou completamente um dos terminais da Internet, e passou os dias seguintes montando um sistema de criptografia. Quando estivesse pronto, ele ia tentar reconectar na rede e acessar um site de notícias. Se não fosse bloqueado, ele ia ter acesso direto a informação original do site.
   Amanhã, ele disse para si mesmo, amanhã eu vou o que está acontecendo lá fora, e o que estão escondendo de mim.
   Mas foi no meio da noite mesmo que ele acordou, no meio de um sonho. "Não é o governo americano", ele pensou, os olhos arregalados, a respiração ofegante, enquanto se sentava subitamente na cama, "não é nenhum governo. Deus do céu, eu sei quem está por trás disto".

quinta-feira, 28 de março de 2013

Linguagem de Máquina 6/8


   Vanessa se contorcia em convulsões no chão, ao lado da mesa.
   Rubens não sabia o que fazer, e primeiro afastou as cadeiras, depois tentou segurá-la pelos braços.
   - O que está acontecendo? Vanessa? - era óbvio que ela não estava escutando ou reagindo. Primeiro ele tentou imobilizá-la, talvez por um minuto ou dois, mas parecia só piorar as coisas, e ele ficou com medo de machucá-la. Rubens se lembrava de ter visto em algum lugar que se colocava uma colher na boca de pessoas em convulsão para não engolirem a língua. Ele chegou a soltá-la e pegar uma colher na mesa, mas quando se abaixou novamente, as convulsões haviam parado.
   - Vanessa? - ela olhou para ele e começou a se afastar, no chão mesmo, se arrastando de costas. Os olhos estavam arregalados. A boca se abriu, como se fosse gritar, mas ela não emitiu nenhum som.
   - Vanessa? - ele repetiu - o que houve? você está bem?
   Vanessa fechou os olhos, e então soltou um suspiro. Parecia que seu corpo começava a relaxar. Então abriu os olhos e se levantou. Ela caminhou lentamente até a mesa e pegou um prato na mão.
   - Você está melhor? O que aconteceu? - por um momento, Rubens ficou com receio que ela iria voltar a simplesmente ignorar suas perguntas, como nos primeiros dias, mas desta vez ela respondeu com seu eterno sorriso.
   - Não houve nada. Por quê?
   - Você teve uma convulsão. Agora mesmo - Rubens apontou para as cadeiras jogadas pelo chão.
   - Não lembro - ela hesitou, e baixou a cabeça, a voz quase num murmúrio - eu sou epilética. Desculpe se assustei você.
   Vanessa não falou mais nada, e começou a recolher os pratos da mesa. Rubens sabia que quando estava trabalhando, ela praticamente não respondia suas perguntas, na verdade parecia nem perceber sua presença.
   Rubens decidiu ficar por perto, para ter certeza que ela não ia ter uma nova convulsão. Normalmente ele a deixava sozinha e ia para o escritório acessar a Internet ou trabalhar, mas desta vez resolveu ficar na sala, observando-a.
   Depois de recolher toda a mesa, e lavar a louça, ela foi até a sala, sem prestar atenção nele, sentou em um sofá, e ligou a televisão.
   Ele a seguiu, e tentou começar uma conversa por duas ou três vezes, mas ela não respondia, como nos primeiros dias dela na casa. Para testar, ele pediu um refrigerante, e ela imediatamente respondeu sorrindo - claro, já estou trazendo - e se levantou para pegar para ele.
   Enquanto ela assistia a programação, ele se conectou na Internet.  Alguma coisa não estava encaixando - mais uma peça de um quebra-cabeça que parecia a cada dia mais confuso - e ele queria confirmar o que já sabia: pessoas com epilepsia não recebiam implantes neurais, pelo menos não implantes padrão. Se recebessem algum implante, seria um equipamento médico, não o mesmo tipo que eles dois usavam.
   Ele só levou alguns segundos para chegar em uma página sobre epilepsia, a mesma que ele já havia lido uns dois anos antes, por acaso, enquanto navegava. Ao contrário do que ele lembrava, a página não falava nada sobre restrições aos implantes neurais.
   Só para confirmar, ele verificou a data e registro das modificações da página, depois visitou páginas sobre implantes neurais. Nenhuma mencionava epilepsia como restrição a implantes.
   - Eu me enganei - ele falou em voz alta, para si mesmo - podia jurar que pacientes epiléticos não podiam usar implantes.
   Mas não foi para si mesmo que Rubens falou, foi para quem o estava vigiando.
   Ele não estava enganado, ele lembrava muito bem de ter visitado algumas daquelas páginas antes.
   A Internet que ele estava vendo estava sendo manipulada.

domingo, 24 de março de 2013

Apenas nós dois

  - Feche a janela, feche a janela!
   Mana desceu correndo as escadas e entrou na sala de jantar da nossa casa. Como sempre, nas noites de tempestade, ela estava chorando, com medo. Queria poder fazer alguma coisa, mas era sempre assim, e agora parecia que todas as noites eram noites de tempestade. Será que nunca mais iria melhorar o tempo, sempre uma tempestade para assustar mana?
   - Calma, mana, está tudo bem. Não precisa ter medo.
   - Não está bem - ela berrava - não está nada bem. Papai disse que ia vir e não veio. E agora começou uma tempestade. E está chovendo dentro do meu quarto. E está tudo escuro lá fora. E eu estou com medo - e ela gritou mais alto ainda - e papai não veio!
   Eu segurei mana pela mão, e subimos até seu quarto. A janela estava aberta, como sempre. O vento estava revirando tudo, a porta escancarada. Não era só água, tinha areia, terra, cinzas, tudo sendo carregado para dentro do quarto pela tempestade.
   - Olha, mana, eu vou fechar a janela, está bem? Eu fecho a janela e vai ficar tudo bem. Entendeu? A tempestade não vai entrar, não vai fazer mal nenhum para a gente, certo? Vai ficar tudo bem - eu menti para ela. Que mais eu podia fazer? Pelo menos, ela se acalmou um pouco.
   Eu fechei a janela e o barulho diminuiu, o vento dentro de casa parou. Mas a casa inteira parecia balançar. As janelas batiam e batiam, prestes a arrebentar a cada rajada mais forte. Na verdade já arrebentaram há muito tempo, mas não importava.
   - Brigada mano. Eu estava com medo. Ainda estou. Quando o pai vem?
   - Ele já está chegando, mana, já tá quase chegando - eu menti de novo. Era só o que eu fazia, mentir para mana e tentar que ela não ficasse muito assustada. Era só por isto que eu estava aqui, para cuidar da mana.
   - Vamos ver a tevê, mano? Quem sabe o pai aparece na tevê? - tinha dias que ela não via tevê, que eu conseguia ler historias para ela, mas eram cada vez mais raros. Era tevê, tevê, tevê, e eu sabia que ela ficava só mais assustada depois.
   - Mana, me deixa ler um livro para você, está bem? Eu leio Judy Moody, aquele que você gosta, que ela quer ficar famosa.
   - Eu quero ver tevê! - ela gritou, e desceu correndo as escadas. Não tinha muito que eu podia fazer, não tinha como impedir, só podia ficar ao seu lado e tentar que ela não ficasse ainda mais nervosa.
   Quando entrei na sala ela já estava no sofá, sentada, assistindo a tevê com os olhos vidrados. Já não tinha eletricidade há muito tempo, mas não importava, a tevê sempre passava a mesma coisa. Era sempre o mesmo cara falando, a imagem tremida, a câmera balançando.
   - Não saiam de suas casas. Fiquem onde estão e aguardem novas orientações. Tranquem portas e janelas. Evitem a chuva, evitem contato com partículas radioativas. Repetindo, não saiam de suas casas.
   - Mano, eu estou com medo. A guerra começou, não começou?
   - Sim, mana, a guerra começou.
   - Mas o pai é piloto. Eles não vão deixá-lo voltar para casa - e ela começou a berrar de novo - eu quero o pai.
   - Calma mana, o papai tá vindo. A gente só tem que esperar, o pai tá vindo.
   Mana subiu correndo a escada, de volta para seu quarto. A tevê ainda mostrou por alguns segundos a imagem do cogumelo no fundo de onde o cara falava, depois só estática. Depois, quando mana já tinha sumido da vista, além da escada, a tevê ficou apagada, toda quebrada e meio afundada no meio do pó que foi se acumulando ao longo dos anos.
   Eu subi correndo a escada, mas mana já vinha descendo, chorando, recomeçando todo o ciclo.
   - Feche a janela, feche a janela!
   O vento já estava entrando em seu quarto de novo, o pó sendo jogado para fora da porta, as janelas, há muito destruídas, incapazes de deter o vento.
   Eu abracei mana, tentando acalmá-la, garantindo que papai já ia chegar, mesmo sabendo que era mentira. Papai nunca voltou. Ninguém nunca voltou.
   Para sempre, estávamos sozinhos com a tempestade, eu e a mana. Apenas nós dois.
   Apenas dois fantasmas.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Linguagem de Máquina 5/8

   Rubens estava há três dias parado em um mesmo problema, e não tinha a menor ideia do que era, só sabia que havia algo de errado. Nos últimos dias, seu trabalho havia se tornado imensamente mais sofisticado, e ele já não conseguia entender exatamente tudo que estava fazendo, só tinha uma percepção que algumas partes não estavam se encaixando mais. Era quase mais um trabalho artístico que um programa, como se estivesse pintando um quadro e faltasse corrigir algum detalhe. O problema é que ele estava pintando um quadro sem enxergar, e foi o que falou.
   - Há algum erro aqui, pelo menos eu sinto que alguma coisa está errada, mas eu não tenho como resolver sem saber exatamente o que estou desenvolvendo.
   A resposta, como sempre, veio de imediato - seu trabalho é identificar e corrigir os erros nas partes do sistema que lhe forem repassadas. Entender o todo é irrelevante.
   - Bom, então vão ter que resolver sem mim, ou vamos apostar que na verdade não existe nada de errado. Me passem algum outro problema e deixem este de lado - Era quase um blefe, ele tinha quase certeza que eventualmente ia conseguir resolver, mas estava cansado de tantos segredos, era como trabalhar de mãos atadas.
   - Você está correto, existe um problema, e é em um ponto crítico do sistema. Estamos esperando que você resolva para podermos avançar no desenvolvimento.
    - Olha, é óbvio que vocês têm pelo menos uma dúzia de programadores trabalhando nisto, e duvido que eles não saibam o que está sendo desenvolvido. Sinceramente, eu nem sei porque vocês precisam de mim, contratar alguém para fazer meu trabalho certamente é mais barato que tudo que vocês estão fazendo aqui, não que eu não seja grato por terem me livrado da prisão.
   - Você está equivocado, não há muitos que poderiam fazer o que você está fazendo. Precisamos que você resolva o problema atual.
   "Bom, então estou com algum poder de barganha agora", Rubens pensou.
   - Então eu preciso poder ver o que está errado. Eu só tenho a sensação de que as coisas não estão encaixando como deveriam, mas não tenho ideia do que está errado - Pela primeira vez pareceu haver uma hesitação antes da resposta vir. Será que a misteriosa voz estaria consultando algum superior?
   - Nós teremos que avaliar esta questão.
   - Ouça - Rubens respondeu, decidido a usar sua última carta - já deu para eu descobrir um pouco do que vocês estão fazendo. Era óbvio que em algum lugar estava por trás um sistema massivamente concorrente, e que é capaz de aprender ao longo do tempo. Vocês estão construindo uma rede neural, e desenvolveram alguma nova técnica de programar nela. Certamente, vocês também tem algum tipo de simulador, para ver o programa funcionando. Eu preciso ter acesso a este simulador, para testar o que estou fazendo.
   - Você terá acesso ao simulador. Amanhã estaremos liberando novas ferramentas que permitirão que você acompanhe os resultados de seu desenvolvimento.
   - Obrigado - Rubens agradeceu, mas ninguém mais lhe respondeu. Claro que seria ótimo poder simular o que quer que ele estivesse desenvolvendo, mas igualmente importante é que agora ele poderia ter uma ideia do que estava ajudando a criar. A última coisa que ele gostaria, fosse o governo americano ou não, era participar novamente de uma catástrofe como o roubo da ogiva nuclear.
   Avançando um importante passo em um mistério, ele chegou a conclusão que era seu dia de sorte, e resolveu atacar uma outra questão que o incomodava na mesma medida: Vanessa.
    Ele já havia descartado uma série de hipóteses, a começar por ela ter algum problema mental. Ele confirmou que ela tinha um implante neural subcutâneo como o dele, embora nunca a visse usando um computador. Pessoas com problemas mentais sérios eram proibidas de usar tais implantes. Isto também indicava que ela devia ser uma jovem de classe média, pelo menos, já que estes implantes não eram baratos.
   Restava a hipótese dela ser simplesmente uma garota de programa, mas isto não explicava a sensação que ele tinha que ela nunca falava com naturalidade, muitas vezes ficando simplesmente em silêncio, ao invés de responder suas perguntas. Ele estava cansando disto, estava começando realmente a gostar dela, por mais estranha que fosse, e estava na hora de saber pelo menos alguma coisa a seu respeito.
   - Vanessa - ele falou, em um tom normal de conversação, enquanto comiam o jantar que ela havia preparado. Havia decidido que era o melhor momento para tentar com mais insistência obter alguma informação - fale-me um pouco dos seus pais.
   - Não quero falar sobre isto. Vamos mudar de assunto - nos primeiros dias, ela simplesmente ficava em silêncio quando ele tocava neste assunto. Agora, pelo menos, ela respondia.
   - Estamos há dias só nos dois aqui. Eu quero saber um pouco mais sobre você. Me fale sobre sua mãe, como ela é?
   - Não quero falar sobre isto. Vamos mudar de assunto.
   - Eu insisto. Me diga pelo menos alguma coisa sobre seus pais.
   Vanessa repetiu a mesma frase de novo, e Rubens insistiu. Os olhos dela estavam bem abertos, anormalmente abertos, e ela se levantou da mesa e começou a repetir sem parar as mesmas duas frases, olhando para ele e gritando, a primeira vez que ele a havia ouvido gritar.
   Então, Vanessa caiu no chão e começou a ter uma convulsão.

terça-feira, 19 de março de 2013

Alien a Bordo - Revisão 1

   Hesitantes, eles entraram na principal sala de reuniões da nave, vindos em grupos de dois ou três. Alguns ainda lentos, recém-despertos, surpresos pela convocação durante seu turno de sono.  Em todos, visível uma curiosidade que só aumentou quando as portas se fecharam. Ava as trancou quando o último tripulante chegou para a reunião, e tinha ordens para abrir somente quando tudo estivesse resolvido.
   - Um de nós é um espião – eu falei, sem dar tempo para que todos se acomodassem, minha voz alta apenas o suficiente para ser ouvida acima do ruído das conversas, que, de súbito, cessaram. Segundos de silêncio se seguiram, e eu nada falei, observando a reação dos presentes. Todos atônitos, a revelação pesando no ar.
   Alguém teria que quebrar o silêncio, e, uma vez que eu optei pelo silêncio, o papel coube naturalmente a Olf, o mais velho entre nós, sua idade conferindo um respaldo que nada tinham a ver com a hierarquia formal. Ele era o mais velho, e o que ele dissesse seria ouvido por todos a bordo. Uma pena que, como sempre, nada de útil ele tivesse a dizer.
   - Isto é impossível, Ralph.  Nossa missão é contra o flagelo, é impossível haver um traidor entre nós – eu ri por dentro. Impossível, de fato, eu repeti para mim mesmo as palavras de Olf, em irônico silêncio.  Mas minha voz foi séria quando respondi.
   - Impossível? Sim, deveria ser impossível, nós mal conseguimos nos comunicar com o inimigo, ele recusa qualquer contato. No entanto, um de nós é efetivamente um traidor, Olf. Pior. Um traidor a serviço do flagelo. E nós temos que descobrir quem ele é. Do contrário, teremos que abortar nossa missão.
   - Como você pode ter certeza disso, Ralph.
   - Ava tem a prova, Olf. Ava, relate para todos o que acabou de me contar.
   - Pois não, Ralph - a voz sintética do computador central da nave indistinguível de uma voz natural - A confirmação veio na última transmissão que recebemos, e devo dizer que, com base nos fatos transmitidos, concordo com as conclusões do comando central. Há, com altíssimo grau de probabilidade, um espião nesta nave.
   - Com todo respeito a você e seus colegas do comando, Ava, não seria a primeira vez que um sintético chega a conclusões totalmente falsas – desta vez, quem tomou a palavra foi Margô, nossa analista chefe, certamente a mais ponderada e lógica de toda a tripulação. Curioso que justamente ela tivesse as maiores ressalvas a tudo que envolvia inteligências artificiais - É por isto que orgânicos seguem sendo responsáveis pelas decisões estratégicas de alto nível.
   - Estou ciente de nossas limitações, Margô, e o percentual de erro de nossos resultados é, atualmente, incluído em toda análise estatística que fazemos. Entretanto, as conclusões já foram validadas pelo alto comando, que, como você sabe, é exclusivo de orgânicos - a voz de Ava continha um leve traço de reprovação no final da frase. Há anos, sintéticos vinham questionando a ausência de computadores na cúpula do comando central, alegando ser um ultrapassado preconceito.
   - Sugiro que deixem Ava concluir seu relato - eu intervi, visando assegurar que nos concentrássemos na única questão realmente importante em jogo.
   - Obrigado Ralph. Para contextualizar melhor nossas conclusões, primeiro apresentarei um breve relato de nossa situação atual.
   Eu mal prestei atenção, enquanto Ava relatava, de forma muito resumida, os acontecimentos das últimas quatro décadas. Obviamente desnecessário, mas sintéticos parecem sempre duvidar da nossa capacidade de reter informações. Ela rapidamente passou pelos primeiros contatos com os alienígenas, pela destruição dos mundos coloniais, pelas tentativas de comunicação, enquanto ainda se acreditava que poderia ser tudo um mal entendido, até a mobilização para a guerra e as primeiras batalhas no espaço.
   - Nos últimos dez anos - Ava continuou - embora tenhamos, em grande parte, detido o avanço alienígena, percebemos que eles pareciam antecipar nossos movimentos, em um grau que não poderia ser facilmente explicado pela sorte, ou mesmo por um adversário com inteligência superior a nossa. Inevitavelmente, nós, sintéticos, chegamos à conclusão que a única explicação racional era a presença de espiões entre nosso povo.
   - E o alto comando concordou com esta conclusão? – Margô interrompeu novamente, mantendo seu ceticismo.
   - Na verdade, inicialmente não. Pela ausência de sintéticos, como pontuei antes, Margô, o alto comando sofre das mesmas fragilidades de inteligências puramente biológicas. Como sabemos, orgânicos têm dificuldade em aceitar conclusões sem evidências diretas. Estas evidências foram finalmente obtidas.
   - E quais são elas, Ava? - Olf, novamente.
   - Pouco depois de iniciarmos nossa viagem, uma mensagem codificada foi enviada para esta nave. Foi por puro acaso que detectei a comunicação, mas não consegui identificar sua origem nem seu conteúdo. Porém, temos próximo de 100% de certeza que foi enviada pelos alienígenas. A conclusão lógica é que há alguém nesta nave que recebeu esta mensagem, alguém que está em comunicação com o flagelo.
   - E, senhores - eu interrompi - não sabemos quem recebeu, não sabemos suas intenções, e não sabemos o conteúdo da mensagem. Mas, como comandante da nave, eu não tenho outra escolha além de abortar a missão, a menos que descubramos, aqui e agora, quem de nós é um traidor.
 * * *
   Foram horas e horas de discussões, de teorias sendo formuladas, apenas para serem em seguida descartadas. Com o tempo, a desconfiança foi aumentando, junto com o cansaço e a irritação.
   Algumas revelações surgiram.
   Even participou dos protestos estudantis de 2315, esteve presa, mudou o nome, recebeu uma permissão especial do governo para começar uma nova vida.
   Laos participou de uma seita ilegal que defendia a rendição para os alienígenas, por acreditar serem eles seres superiores. Ele foi um forte suspeito de ser o traidor. Até que revelou o que o fez sair da seita e se alistar. Sua irmã morava em Colônia 7, o mundo que os aliens transformaram em um inferno radioativo. Ninguém mais questionou sua lealdade.
  Foi a suspeita de Margô que atingiu a todos de forma mais impactante.
   - Eu sei quem é o único aqui que pode ser o traidor - ela disse.
   Nós olhamos para ela, curiosos. Sua pausa obviamente para gerar mais impacto na revelação.
   - Ava. O único traidor possível é Ava.
   - Margô - Ava respondeu de imediato - eu sei que você tem restrições aos sintéticos, mas esta hipótese não faz sentido.
   Foi a mais longa das discussões. Por um lado, não víamos como os alienígenas poderiam ter alterado Ava. Boa parte de sua personalidade era fixa, codificada diretamente em hardware, portanto não sujeita a manipulação. Por outro lado, todas as alternativas também não pareciam fazer sentido.
   Por fim, a discussão se encerrou com base no argumento mais importante de todos. Se os alienígenas estivessem controlando os sintéticos, então a guerra já estava virtualmente perdida. Na verdade, se Ava assim desejasse, não teríamos sequer sabido da suspeita de haver um espião na nave.
   - Ava, Olf, estou propondo abortar a missão e retornarmos. Preciso da concordância de vocês dois. Não podemos seguir adiante com o risco de um espião na nave. Deixaremos para o alto comando a tarefa de continuar esta investigação.
   Mais alguns minutos se seguiram, de discussões adicionais, últimas ideias, mas, por fim, houve a concordância. A missão seria abortada. Ava abriu a porta para sairmos.
   Em minha cabine, eu olhei para meus braços e os pequenos tentáculos verdes na ponta de cada um. Pensei na mensagem - impeça a nave de chegar a seu destino, não importa como - e agradeci por ter conseguido cumprir meu objetivo sem a morte de nenhum dos seres que aprendi a respeitar.
   "Algum dia voltarei para meu corpo? algum dia serei humano novamente?" eu falei em silêncio comigo mesmo, e me perguntei uma vez mais quando terminaria minha missão.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Linguagem de Máquina 4/8


   Ao longo dos dias seguintes, uma nova rotina se estabeleceu. Uma rotina com alguns aspectos positivos em relação às primeiras semanas preso na casa, Rubens admitia para si mesmo. Vanessa estava sempre pronta para atender a todas as suas vontades. “Estar ali para servi-lo” parecia ser algo que ela tomava ao pé da letra. Mas também o deixava incomodado não saber praticamente nada sobre ela. Sua teoria atual era que ela era uma garota de programa, e ele estava tentando se manter emocionalmente afastado, mas não era fácil, especialmente sendo a única pessoa que ele tinha para conversar. Ela até tinha começado a falar de uma forma mais normal, nos últimos dias.
   Não conseguindo nenhum avanço em um dos seus mistérios, Rubens resolveu se concentrar nos outros. O que ele estava ajudando a desenvolver e quem era seu misterioso empregador.
   A segunda questão ele pensava saber a resposta. Primeiro imaginara que estava trabalhando para um grupo terrorista, talvez o mesmo que havia detonado a bomba – um pensamento que o deixara horrorizado nos primeiros dias – ou para um grupo empresarial, mas já abandonara estas ideias. O tipo de ferramentas e a própria linguagem que estava utilizando eram avançados demais para terem sido desenvolvido por algum grupo. Parecia muito mais um desenvolvimento de anos e anos, que no entanto foi mantido em absoluto segredo, e ele só conseguia imaginar uma resposta possível para quem poderia estar por trás disto.
   - Eu não creio que vocês estão me mantendo isolado para que o governo americano não me encontre – Ele falou para o microfone. Ele sabia que podiam ouvi-lo de qualquer lugar da casa, mas aparentemente a maioria das vezes só respondiam quando ele estava em seu escritório.
   - Estamos mantendo-o isolado pois você está oficialmente morto. Se você for encontrado vivo isto geraria toda uma série de efeitos colaterais, inclusive o governo americano voltando a caçá-lo – como sempre, a resposta veio de imediato. Para Rubens, era uma confirmação que ele não estava falando sempre com a mesma pessoa, mas sim com uma equipe. Ninguém conseguiria estar permanentemente pronto para responder.
   - O governo americano não está mais me caçando, ele já me pegou. São vocês, não? Eu estou trabalhando para o governo agora. – Não houve resposta desta vez. Assim como Vanessa, algumas vezes eles simplesmente se recusavam a responder suas perguntas.
   - Ouçam, a esta altura vocês já devem saber que eu não fiz nada intencionalmente. Eu nem imaginei que o sistema que eu estava desenvolvendo ia ser usado para invadir uma base do governo de vocês.
  - Nós não estamos confirmando nem negando sua hipótese. Você pode assumir a alternativa que lhe parecer mais conveniente. Agora, pedimos que retorne a seu trabalho.
   Rubens já sabia que nestes momentos era muito difícil obter mais alguma resposta. Muitos destes diálogos, nestas últimas semanas, terminavam desta forma. Mesmo assim, talvez fosse significativo que eles não negaram sua suspeita.
   Talvez, se desvendasse o que exatamente ele estava ajudando a desenvolver, quem estava por trás do projeto se tornaria óbvio, mas esta na verdade parecia ser a questão mais misteriosa de todas. Aparentemente, seu trabalho era apoiar na construção das ferramentas que seriam utilizadas mais tarde no desenvolvimento de um sistema, como se ele estivesse participando na construção de um computador totalmente novo, desenvolvendo recursos para armazenar informações, selecionar fluxos de dados, mas sem saber qual a aplicação final que seria desenvolvida.
   Sua teoria atual é que era alguma alternativa a computadores tradicionais, talvez algum tipo de computador biológico. De qualquer modo, o que quer que fosse, não era parecido com nada que ele já tivesse desenvolvido.
   Ele perguntou se poderiam lhe dar mais alguma informação sobre o projeto, mas a resposta foi a mesma das outras vezes que perguntou: nenhuma.
   Frustrado, ele resolveu encerrar mais cedo o trabalho naquele dia. “O que vai acontecer se eu simplesmente me recusar a fazer meu trabalho, a menos que eles comecem a me dar respostas?”, Rubens se  perguntou, e por um instante chegou a pensar em fazer exatamente isto, mas resolver esperar. Bem ou mal, independente de quem fossem, ele estava nas mãos deles.


sábado, 9 de março de 2013

Linguagem de Máquina 3/8


   - Quem é você?
   - Vanessa. Estou aqui para servi-lo – Ela repetiu tanto a resposta quanto o sorriso.
   - Como assim? Quem mandou você? – Ela olhou para Rubens, sempre mantendo seu sorriso, mas não respondeu nada.
   - Não pode me dizer?
   Nenhuma resposta.
   - Você fala português? Está entendendo o que eu falo?
   - Falo sim.
   - E não pode responder minhas perguntas?
   A jovem abaixou a cabeça, como se envergonhada, depois falou, a voz um pouco mais baixa – Desculpe. Só estou aqui para servi-lo.
   - Tá, tudo bem. Bom, fique à vontade, então. – Rubens coçou a cabeça, não sabia bem o que fazer agora – Quer que eu mostre a casa?
   - Se você quer mostrar a casa, vou ficar feliz que você mostre.
   Pelo menos parecia uma resposta um pouco mais natural, e Rubens a levou por toda a mansão, os quartos, cozinha, sala de ginástica, laboratório de informática. Rubens já havia reparado que a mansão parecia mais preparada para receber um grupo de pessoas que apenas ele.
   Durante toda a apresentação da casa, Rubens continuou tentando estabelecer uma conversa. Algumas perguntas, Vanessa respondia, outras não, e ele imaginou que talvez ela apenas fosse muito tímida, mas mesmo assim ela o deixava desconfortável. De qualquer modo, não conseguiu descobrir mais nada sobre ela.
   Depois, deixou-a na cozinha – ela disse que queria preparar uma refeição para ele – e foi para o escritório que usava para seu trabalho. Antes de começar, ele tentou descobrir quem era esta Vanessa e por que enviaram ela, mas não teve muito mais sucesso no diálogo com seu ‘chefe’.
   - Você nos alertou para sua necessidade de contato humano. Enviamos Vanessa para servi-lo.
   - Tá, e por que vocês proibiram ela de ter uma conversa normal comigo?
   - Iremos melhorar isto – Melhorar? Isto estava definitivamente ficando ainda mais misterioso.
   Rubens levou mais tempo que o habitual para se concentrar em seu trabalho, mas depois que começou, sua culpa, o mistério da mulher, tudo foi esquecido, enquanto se concentrava em um problema particularmente complexo. Aparentemente, os programadores misteriosos haviam trabalhado bastante durante a noite. “Estão na Índia, eu aposto”, ele pensou enquanto trabalhava.
   Quando por fim parou para descansar um pouco, descobriu que Vanessa havia feito um almoço para eles. Depois de semanas de sanduiches e comida congelada esquentada no micro-ondas, foi uma grata surpresa. De tempos em tempos eram deixados suprimentos e produtos de supermercado dentro da casa, ao pé de escada, mas Rubens nunca teve muita experiência em fazer sua própria comida.
   Ele sentou à mesa, e Vanessa permaneceu em pé, até que ele mandou ela sentar e comer junto com ele. Novamente, as tentativas de estabelecer uma conversa com ela foram frustrantes. Ela era sempre simpática e sorridente, mas parecia procurar responder o mínimo possível, isto quando não ficava simplesmente em um silêncio constrangedor. No final o almoço, embora saboroso, também foi uma experiência incômoda.
   Assim que ele terminou, Vanessa pôs-se a arrumar a mesa, e quando ele se prontificou em ajudar, ela respondeu que ele tinha o seu trabalho para fazer, e que este era o trabalho dela.
   “Depois de três semanas sem falar com ninguém, eu talvez esteja sendo insistente demais. De repente, ela nem mesmo foi com a minha cara”. Rubens pensou, e retornou ao seu escritório.
   Ele trabalhou até tarde, e quando finalmente parou, encontrou um jantar pronto. O silêncio foi igualmente constrangedor, mas desta vez ele nem tentou conversar, resolveu deixar que ela falasse quando se sentisse confortável. Desta vez, pelo menos, ela sentou para comer junto com ele.
   - Bom, já está ficando tarde. Você vai voltar amanhã?
   - Eu vou ficar aqui, estou aqui para cuidar de você.
   - Ah, ok... – Rubens respondeu. Depois que ela ajeitou a mesa, tendo novamente insistido que isto era trabalho dela, ele a levou até um dos quartos – Acho que você pode dormir aqui, então. Se preferir, tem mais dois quartos vagos, mas este é o maior, e tem um banheiro exclusivo ao lado. Se quiser trazer suas coisas, tem um armário vazio aqui.
   Ela agradeceu e não falou mais nada. Rubens a deixou e foi para seu próprio quarto.
   No meio da noite ele acordou de um sonho em que estava com sua namorada, na cama, apenas para perceber que de fato havia alguém com ele. Em cima dele, seria mais preciso.
   - O quê? Quem?
   - Shhh. – Vanessa falou, o rosto aparecendo por entre as cobertas, para então desaparecer novamente, sua boca descendo pelo seu corpo.
   Por um instante, Rubens quase disse para ela parar, mas hesitou por alguns instantes, pensando que provavelmente nunca mais iria ver sua namorada mesmo. E depois não pensou em mais nada.
   Pela manhã, foi acordado com um bandeja de café da manhã sendo colocada em seu colo por uma Vanessa nua.
   - Olhe, você está sendo obrigada a alguma coisa? Quer dizer, alguém tem seus pais como reféns ou alguma coisa do tipo? Eu não quero que você faça alguma coisa contra sua vontade – Um pouco tarde para dizer isto, sua consciência lhe alertou...
   - Estou aqui para servi-lo – ela respondeu sorrindo.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Linguagem de Máquina 2/8

   A culpa pelo que fez ainda incomodava Rubens. Algumas vezes vinha no meio da noite, em um pesadelo, e ele acordava gritando. Outras vezes ele estava simplesmente descansando, fazendo um intervalo de seu trabalho, quando se via a pensar em todas as pessoas que morreram por sua causa, e começava, ali mesmo, a chorar.
   A verdade, porém, é que ele tentava não pensar nisto. Assim como tentava não pensar em sua antiga vida, seus pais, sua namorada. Eles achavam que ele estava morto, e talvez fosse melhor assim.
   Ele próprio havia visto no noticiário. Seu suicídio, o corpo encontrado com uma bala na cabeça, a nota – que na verdade ele próprio escreveu – pedindo perdão pelo que fez. Enquanto escrevia a mensagem de suicídio, Rubens chegou a imaginar que iam mesmo matá-lo e fazer parecer que foi ele próprio, mas o que podia fazer? Seus empregadores eram definitivamente muito poderosos, e ele estava na mão deles.
   Quão poderosos só ficou claro quando foi divulgada a análise da perícia. Não só o corpo havia sido reconhecido pelos parentes, mas a análise do DNA foi conclusiva. Era de Rubens mesmo o corpo que havia sido encontrado morto.
   Ele perguntou como haviam conseguido fazer uma simulação tão perfeita da morte dele, mas não recebeu resposta. Ele nunca recebia nenhuma resposta que não fosse a uma pergunta diretamente relacionada a seu trabalho.
   Se tudo era misterioso, seu trabalho não era exceção. Era o programa mais complexo que Rubens já havia feito. Levou semanas só para entender a linguagem e as ferramentas que iria usar no trabalho, eram muito diferentes de qualquer outro ambiente no qual já trabalhou.
   - Eu vou precisar ativar minha conexão neural – ele disse em voz alta, o microfone do computador captando sua voz, na segunda semana que estava na mansão – não tenho como trabalhar na velocidade que vocês querem de outro jeito.
   Ele havia desconectado sua interface assim que resolveu fugir. Teoricamente não era rastreável, e era um modelo simples, como qualquer adolescente usava para acessar mais facilmente a rede. Havia experimentos com modelos muito mais sofisticados, implantes que eram colocados por cirurgia diretamente no cérebro, mas só eram realizados com autorização médica, e restritos a casos muito graves, como cegueira, pacientes tetraplégicos, com doenças mentais e questões do tipo. Depois que se percebeu que com tais implantes era possível influenciar e até controlar a mente de uma pessoa, o uso dos mesmos foi proibido exceto em situações médicas.
   Em alguns de seus pesadelos, Rubens imaginava o governo americano implantando chips em seu cérebro. Terroristas presos não tinham nenhum dos direitos previstos na constituição americana.
   Mas nada disto era problema para a interface que Rubens usava. Ela só permitia que ele interagisse mais rápido com o computador.
   - Você pode ativá-la, se quiser. Enquanto não sair da casa, não há risco de detectarem.
    “Então eu estava certo?”, Rubens pensou, “É possível rastrear o sinal de uma conexão neural? Ou eles só estão dando mais uma desculpa para me manter preso aqui?”
   - Eu não posso sair desta casa, lembram? Vocês estão me mantendo preso aqui! – Podia ser uma prisão confortável, era uma mansão enorme e com todo o conforto, mas ele não havia visto ou falado com qualquer ser humano desde que fora trazido, exceto seu contato, que, de qualquer modo, se limitava a lhe dar instruções.
   Com seu acesso neural ativo, o trabalho ficou um pouco mais fácil, e na verdade era empolgante, algo realmente muito complexo e desafiador, e Rubens sempre gostou de desafios. O que o incomodava era que ainda não havia entendido que tipo de sistema ele estava ajudando a desenvolver. Era óbvio que outras pessoas também estavam trabalhando no mesmo, e Rubens começou a entender que seu papel era revisar e corrigir o que outros haviam feito.
   Na verdade, se não fosse o desafio, Rubens já teria enlouquecido nos primeiros dias na mansão, mas mesmo assim não aguentava mais ficar preso e sozinho.
   - Eu só quero sair por alguns minutos, esta bem? Eu não falo com ninguém há quase três semanas. Eu cubro o rosto com uma manta, ninguém vai me reconhecer.
   - Por que você deseja sair e se expor a um risco? Diga o que você deseja, que providenciaremos – A voz era sempre igual. Rubens perguntou uma dúzia de vezes qual era seu nome, sem receber resposta. A voz nem se deu ao trabalho de inventar um nome falso. Ele se perguntava, inclusive, se era sempre a mesma pessoa. Talvez fosse uma equipe, e a voz fosse sintetizada por computador.
   - Olha, eu estou fazendo o trabalho direito, pelo menos eu acho que estou. Nem isto vocês me dizem. Mas se eu não sair e conversar com outras pessoas, eu vou pirar. Dá para entender?
   - Seu trabalho está dentro do que esperávamos. Quanto a sair, é um risco inaceitável. Iremos providenciar uma alternativa.
   - Como assim, alternativa? Eu quero sair, não quero nenhuma alternativa. – Rubens gritou, mas ninguém respondeu.
   No dia seguinte sua alternativa tocou a campainha da porta.
   Rubens desceu as enormes escadarias da mansão hesitante. Seria a CIA? Descobriram que ele estava vivo e onde estava? A porta sempre estava fechada, ele já tentara abri-la algumas vezes.
   - O que eu faço? – Ele falou para o ar, enquanto parava no meio das escadas. Todas as outras vezes, ele só havia recebido uma resposta quando falava diretamente para o microfone do computador na sala de trabalho. A resposta, agora, que veio de algum lugar impossível de identificar, serviu para confirmar o que ele suspeitara desde o início, que toda a mansão era vigiada.
   - Abra a porta.
   Rubens terminou de descer as escadas e abriu a porta, que desta vez não estava trancada. Do lado de fora estava uma jovem aparentemente da sua idade, vinte, vinte e um anos. Ela sorriu e entrou, enquanto ele dava espaço, atônito.
   - Estou aqui para servi-lo – ela falou.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Linguagem de Máquina 1


   Rubens acreditou que seria impossível localizá-lo, a menos que alguém o reconhecesse na rua. Ele tomava extremo cuidado para não aparecer em nenhuma câmera, com receio que sua imagem terminasse em algum software de detecção de rostos do governo americano. Usava luvas finas, quase invisíveis, nos dedos, para não deixar digitais. Pagava tudo exclusivamente em dinheiro.
   Em três meses, ele já estava cansado desta vida. A pior parte era não poder ter contato com ninguém de sua família, não poder falar com sua namorada. Isto que não foi realmente sua culpa, pelo menos no sentido que ele nunca teve nenhuma intenção de ajudar terroristas a roubar um dispositivo nuclear dos americanos.
   Quando percebeu para o que eles estavam usando o software que ele desenvolveu, já era tarde. A notícia do roubo da ogiva estava em todos os jornais do mundo.
   Ele passou talvez duas horas tremendo, em casa, pensando no que iria fazer, até decidir ligar para a embaixada americana. Ele imaginava que, se ajudasse a prender os terroristas, provavelmente ia receber uma pena leve. O mais importante é que fosse considerado um criminoso comum, com seus direitos assegurados. Desde 2042, terroristas não tinham nenhum direito, tanto pela lei americana quanto pelas convenções internacionais. O Brasil não tinha assinado o último tratado antiterrorismo, mas Rubens tinha certeza que isto não ia adiantar muito no seu caso.
   Aquele momento, em que decidiu contar tudo, ficaria para sempre gravado em sua memoria. Como dizia a expressão, era algo que levaria para o túmulo. Sua mão no celular, o embaixador ouvindo sua explicação de como desenvolveu um software que talvez tenha sido utilizado no roubo da ogiva, a tela internet na parede de seu quarto subitamente abrindo uma janela para mostrar uma notícia que ele sabia que tinha de ser muito importante – seu terminal estava configurado para não abrir nenhuma notícia automaticamente. E tudo que ele havia feito adquirindo uma nova dimensão naquele exato instante.
   Rubens nem lembra o que o repórter falou. O que ele nunca esqueceria era a imagem por trás, o cogumelo atômico que se levantava por entre os edifícios de uma cidade.
   Ele ainda ficou olhando o celular por alguns segundos, atônito, até que percebeu que agora não haveria nenhuma redução de pena, nenhum entendimento que ele não sabia o que estava em jogo. Ele seria tratado como um terrorista que auxiliou na obtenção de uma arma de destruição em massa que foi detonada em solo americano.
   A pena era a morte.
   Naquele dia, três meses atrás, a vida de Rubens terminou. Ele simplesmente desligou o telefone e saiu de casa, sem nem se despedir dos seus pais.
   Ele tomou tantos cuidados que não conseguiu acreditar quando seu celular bipou com uma mensagem. Era um modelo antigo, da década de 50, não rastreável e totalmente anônimo, sem conexão neural e nenhuma identificação que era ele o usuário. Até então ele teria dito que seria impossível alguém localizá-lo por ele.
   “Rubens, retorne esta mensagem. Represento um grupo interessado em seus serviços”.
   Rubens desligou o celular, abriu e tirou o chip de dentro. Ele nunca deixava nada gravado na memoria interna do chip, mas era melhor não arriscar. Na primeira oportunidade, iria destruí-lo. Então começou a correr, procurando algum local coberto, para evitar que o seguissem por algum satélite ou avião espião. Claro, se já soubessem onde ele estava e o estivessem vigiando, seria impossível escapar. Ele não era nenhum agente secreto, só um programador.
   Ninguém apareceu. Mesmo assim, ele desapareceu novamente, desta vez tomando mais cuidado ainda. Nova cidade, nova identidade, nenhum contato com qualquer pessoa do passado.
   Era frustrante, mas qualquer coisa era melhor que ser pego pelos americanos. Às vezes ele assistia os noticiários. Mesmo mais de três meses depois da tragédia, ela ainda estava na mídia. Fazia quinze anos desde a última vez que uma bomba nuclear havia sido detonada em solo americano.
   Rubens tentava não pensar na quantidade de pessoas que morreram por causa dele. Se começasse a pensar nisto, provavelmente iria se matar pela culpa. Mesmo dizer que nunca imaginou que estava ajudando terroristas não era um grande consolo. Bem ou mal, ele sabia que era algo ilegal que estava fazendo, mesmo que pensasse que era só espionagem industrial.
   A segunda mensagem, Rubens recebeu quando estava à apenas dez dias com sua nova identidade. O mais incrível é que, desta vez, ele recebeu apenas uma hora depois de comprar um novo celular, assim que havia se sentido seguro para tanto.
    Ele nem leu direito a mensagem, apenas repetiu a mesma rotina. Nova cidade, nova identidade.
   Na terceira mensagem ele desistiu de fugir e respondeu. A mensagem apareceu apenas dez minutos depois dele ter comprado o celular.
   “Insistimos em um contato. Queremos ajuda-lo a se ver livre de seus problemas”.
   “Quem são vocês e o que querem comigo?”. Ele teclou de volta.
   Foi neste contato que Rubens recebeu a mais estranha proposta de trabalho de sua vida.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Um Estranho Mundo - Capítulo 4


Capítulo IV
"Qualquer raciocínio científico levaria a conclusão que a presença de seres semelhantes ao homem era a prova que eu estava na Terra, ou pelo menos um mundo de descendentes de humanos. Ao contrário, a presença dos Lepare é que me pareceu provar que eu estava em outro mundo, ignorando todas as semelhanças deles com homens. Talvez minha mente incompleta estivesse simplesmente aceitando o raciocínio simplista de livros e filmes que vi quando criança. Ou talvez aceitar o local e o tempo em que eu estava me levassem a questionamentos que minha mente não estivesse preparada para aceitar naquele momento. É claro, eu estava prestes a ter novas evidências que desafiariam meu raciocínio simplista, mas a mente humana sempre é capaz de criar novas fantasias para o inexplicável".

   Nós caminhamos por talvez uma hora, seguindo pela estrada. A garota e o homem-leopardo que havia falado com ela cavalgavam juntos, ao meu lado, enquanto eu caminhava a pé. Os demais seguiam a frente e atrás, e percebi que olhavam continuamente para a floresta, claramente atentos para ver se havia algum movimento.
   Para meu desapontamento, pois queria descobrir o que pudesse sobre eles, estas criaturas seguiam principalmente em silêncio. Quando falavam, a voz era baixa, mas felizmente, mesmo quando mal conseguia ouvir, a tradução surgia automaticamente em minha mente.
   - Você acha que o humano pode nos dar alguma pista de por que estamos aqui? – o homem-leopardo falou em um quase sussurro, aproximando um pouco mais seu cavalo do da garota.
   - Só vou saber quando conseguirmos falar com ele. Isto se Koro nos deixar – ela olhou para mim enquanto falava, depois continuou – é óbvio que ele não é Arugenanchi. Mesmo esquecendo as roupas, ele não fala a língua deles, tenho certeza. Você precisa convencer Koro a não matá-lo, pelo menos não até termos certeza que ele não foi enviado pelos deuses.
   Eu me esforcei para não estremecer ao ouvir que estavam pensando em me matar. Subitamente, entender este povo e o que eles pretendiam se tornou crucial. Será que eles entenderiam se eu falasse, da mesma forma que eu entendia eles? O único jeito de ter certeza era tentar me comunicar, mas se eles me entendessem, eu perderia a vantagem de me deixarem ouvir suas conversas.
   Eu decidi continuar em silêncio, mas passei a prestar atenção não apenas na tradução que aparecia em minha mente, mas também nas palavras em si.
   - Você conhece o pacto. Estas são nossas terras, e temos o direito de matar qualquer humano encontrado aqui, mesmo que não seja Arugenanchi. – Eu tentei separar as palavras, identificar uma ou duas para começar a entender a língua deste povo, mas eles falavam muito rápido.
   - Sim, eu conheço o pacto. Mas ele não nos obriga a matar ninguém, só nos dá o direito. Nós nem sabemos se ele é um inimigo. – Eu tinha que começar aos poucos. Entender a língua deles poderia ser a diferença entre viver e morrer. A primeira palavra que ela disse talvez fosse ‘sim’. ‘Rai’, eu repeti mentalmente, e a tradução veio no mesmo instante, da mesma forma que quando ela falava. ‘Rai’ era sim. Eu tentei fazer o contrário, pensei em ‘não’, mas não me veio nenhuma informação. Aparentemente, esta tradução mágica só funcionava em um sentido.
   Como eles ficaram em silêncio após sua rápida conversa, me vi refletindo sobre estas ‘mágicas’. Como ela havia me curado? Como, agora, eu tinha esta tradução aparecendo na minha mente quando eles falavam? Eu não queria acreditar em mágicas, mas também não conseguia imaginar uma explicação racional.
   - Estamos chegando, Shiri. Você acha que consegue se comunicar com o humano? – Shiri, eu pensei, tentando memorizar o nome. Pelo menos agora sabia como a jovem se chamava.
   - Não. As linguagens que ele fala são muito diferentes de Lepare e Arugenanchi. Vai levar um dia inteiro para os deuses nos darem o poder de entender o que ele diz – Pelo menos ela me deu a oportunidade de entender o “não”. “Ie”. A tradução não veio, então me lembrei que o i era mais comprido. “iie”, eu repeti mentalmente, e veio a tradução como “não”. E um calafrio percorreu meu corpo. Minhas pernas fraquejaram, e, pela primeira vez desde que ela me curou, o mundo voltou a girar ao meu redor.
   “Hai”. Sim. “Iie”. Não. Ou era muita coincidência, ou eu sabia que linguagem eles estavam falando. Era japonês. Isto era impossível.
   - Tente mesmo assim. – “Tentar o que?”, eu pensei, distraído com minha própria surpresa. Meu corpo tremendo e um pavor ameaçando tomar conta de mim. Ambos haviam parado seus cavalos, e olhavam para mim agora.
   - Humano, se você pode me entender, fale conosco agora. Sua vida pode depender disto – eu hesitei. Falar faria eu perder minha única vantagem, mas também não havia aprendido muita coisa até agora, e eles realmente haviam dito que provavelmente me matariam antes de conseguirem se comunicar comigo.
   - Sim, eu consigo entender vocês – eu respondi e esperei a reação deles, mas, para minha surpresa, percebi apenas confusão no olhar dos dois. Quando eles falaram novamente, eu entendi que nossa comunicação continuava sendo em um único sentido.
   - É inútil, Dao. Não entendo nada do que ele diz, os deuses ainda não me trazem suas palavras. Como disse, vai levar horas para podermos falar com ele. – Dao. Eu agora também sabia o nome daquele que parecia ser o líder deste grupo. “Mas ambos parecem estar abaixo deste Koro, que acham que vai querer me matar”, lembrei.
   - Então teremos que convencer Koro a lhe dar estas horas, Shiri. Não será fácil. – dizendo isto, ele puxou as rédeas de seu cavalo e partiu. Shiri apontou com um gesto para que eu continuasse caminhando, e seguiu atrás de mim.

* * *
   Se eu pudesse tomar como base expressões e atitudes humanas para entender estes estranhos seres que me capturaram, definitivamente a relação de Shiri e Dao com este Koro não era amistosa, embora também me parecesse que pelo menos Dao não deixasse isto transparecer. Felizmente para mim, Shiri não parecia ter ressalvas em confrontá-lo.
   Havíamos recém chegado ao acampamento, que nada mais era que algumas tendas e uma fogueira no centro, quando Koro se aproximou a cavalo e Dao se afastou de nós e foi conversar com ele. Cada vez era mais óbvio para mim que Dao era o líder do pequeno grupo que me prendera, mas Koro era o líder de todo o acampamento. Qual a posição de Shiri e quanta influência ela tinha nos demais era ainda um mistério para mim, mas eu tinha a nítida impressão que provavelmente tal questão definiria minha sobrevivência.
   Koro se aproximou de nós, seguido por Dao. Seu rosto não me pareceu muito diferente de Dao, mas a pele era um pouco mais escura e a juba completamente negra, o que tornava a diferença entre eles bem visível.
   - Então este é o humano que você deixou viver? – sua voz parecia mais firme e impositiva do que de qualquer dos outros que ouvi. Ele tornou claro, não apenas na frase mas na forma que olhava para Dao, que estava se dirigindo apenas a ele, ignorando Shiri.
   - Julgamos melhor deixar a decisão para o senhor – Dao respondeu, de forma solicita. Se eu ainda tivesse alguma dúvida, seria óbvio agora que Koro era seu superior.
   - Na verdade, acreditamos que não há motivo para matá-lo antes de ouvir o que tem a dizer – Shiri imediatamente se intrometeu, enquanto aproximava o cavalo dos dois, se colocando entre Koro e eu – ele não é Arugenanchi. Talvez seja até mesmo um enviado dos deuses.
   - Os deuses nos abandonaram, esqueceu? O que eles vão fazer se matarmos um enviado deles? Nos amaldiçoar novamente? – Enquanto falava, Koro desmontava de seu cavalo.
   - Se tivessem realmente nos abandonado, eu teria meus poderes? Ou como você explica todas as curas que já realizei? – Shiri também desmontou de seu cavalo, novamente se colocando entre eu e Koro. Ele desembainhou uma grande espada que estava em uma bainha presa em seu cavalo, segurando-a com as duas mãos. Imaginei que era uma espada grande demais para ser usada em uma única mão. Eu dei um passo para trás, me afastando dos dois e pensando se teria como correr e me esconder em algum lugar, mas era uma esperança vazia, eu sabia. Mesmo se não estivesse amarrado, qual minha chance de escapar de criaturas montadas a cavalo?
   - Eu deixo a teologia para você, Shiri, e você deixa os assuntos militares para mim. Saia do caminho, e deixe-me lidar com este humano de acordo com o pacto.
   - Se ele for um enviado dos deuses, pode ser nossa última oportunidade de perdão. Quem pode dizer que não fomos enviados para busca-lo? – Era cada vez mais óbvio que minha vida dependeria de quem levasse a melhor na discussão. Eu tentava desesperadamente lembrar de algumas palavras em japonês, se é que era a linguagem que eles falavam, mas nada me vinha a mente.
   - Se ele fosse um enviado dos deuses, não saberia falar Lepare? Dao me disse que ele não fala nem Lepare nem Arugenanchi. Como você explica isto?
   Shiri hesitou, e eu percebi que ela estava perdendo a discussão – mesmo que ele não tenha sido enviado pelos deuses, não quer dizer que não possamos aprender com ele. Devemos pelo menos esperar até que eu consiga me comunicar – Eu pude perceber que, embora argumentasse, o tom de sua voz já continha uma certa resignação.
   - É perigoso demais. Você não sabe que tipo de poderes ele pode ter. Neste momento mesmo ele pode estar se preparando para nos atacar – Atacá-los, me perguntei, surpreso. Que tipo de perigo eu poderia oferecer a estas criaturas? Mas eu sabia que precisava tentar alguma coisa, que meu tempo estava acabando.
   - IIE – eu disse, a voz bem alta. Não. Ambos olharam para mim, surpresos.
   - Você entende o que estamos falando? – Shiri perguntou
   - HAI – sim.
   - Você havia dito que ele não falava Lepare! – Os olhos de Koro se estreitanto enquanto olhava para mim, a desconfiança visível em seu rosto.
   - Ele não fala, tenho certeza. E deveria levar horas para os deuses começarem a revelar para ele nossas palavras. Não entendo. – E então, se virou novamente para mim – Você fala Lepare.
   - IIE – eu disse, e depois continuei em minha própria língua, pois “sim” e “não” eram as únicas palavras que conhecia – eu não falo a língua de vocês, mas entendo tudo que vocês dizem, desde que você me tocou.
   - Você consegue entender o que ele fala?
   - Não, Lorde Koro, os deuses ainda vão demorar para me dar este poder. Mas é óbvio que ele nos entende. Os deuses estão falando com ele, com certeza. Você entende o que isto significa? – e, como Koro nada respondeu, ela continuou – faz pouco mais de uma hora que eu convoquei o poder da fala, e ele não fala nenhuma língua parecida com Lepare, tanto que ainda não consigo entende-lo. Ele é um escolhido dos deuses, talvez enviado por eles. É a única explicação.
   - Você está inventando uma explicação. Talvez ele apenas já tivesse recebido a dadiva de entender Lepare.
   - E de quem ele receberia esta dádiva? Quem, além de mim, entre os Lepare, tem o dom da fala? Se ele próprio tivesse este poder, eu teria percebido. De todo modo, como você disse, a Teologia é minha responsabilidade, e eu digo que ele é um enviado dos deuses.
   Eu nem acreditei quando Koro baixou sua espada, não me parecia que ela estava tendo sucesso em convencê-lo. O que importava é que eu iria viver. E devia minha vida a Shiri.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Um Estranho Mundo - capítulo 3

Capítulo III
"Como eu explicava os cavalos? Seria possível imaginar os Lepare como fruto de alguma evolução convergente, e não como primos próximos do homo sapiens. Ainda assim eles seriam obviamente vertebrados, e mesmo mamíferos. Não seria necessário examinar seus ossos, bastava olhar o maxilar, a estrutura dos cinco dedos, os ombros, para perceber que possuíam exatamente o mesmo plano básico de esqueleto dos vertebrados que evoluíram naturalmente na Terra. Mas, sua aparência pelo menos dava um leve ar alienígena a eles. Nas memorias que eu ainda possuía, eu nunca havia visto nada parecido, exceto em filmes de ficção científica. Mas, e os cavalos? Que explicação eu daria para a existência de cavalos, se apenas parasse para pensar neles?"

   - Pelo amor de Deus, ninguém mais bata na minha cabeça - eu falei assim que comecei a despertar, apenas parcialmente sabendo onde me encontrava. A lembrança de uma batida forte me derrubando - uma segunda batida - era a coisa mais presente em minha mente.
   Eu tentei me levantar, apenas para perceber que minhas mãos estavam amarradas atrás das costas, e que minha tontura havia voltado.
   Uma criatura se aproximou de mim, o rosto, que parecia uma mistura de um humano e um felino, quase encostando no meu próprio rosto. Uma menina com pele de um leopardo no lugar de pele humana, foi o que me pareceu. Ela, se de fato era do sexo feminino, falou algo em uma língua que não entendi.
   - Não estou entendendo. Me soltem por favor - comecei a falar, apenas para parar ao me dar conta que não tinha como eles entender o que eu falava. A criatura - a jovem - me vi chamando-a, pois pelo menos pareceria ser uma uma jovem mulher se fosse humana, pareceu mais insistente. Repetiu várias frases em sua língua estranha, até se convencer que eu não a estava entendendo. Foi só quando deixei escapar um gemido, a cabeça ainda latejando, que ela parou e me examinou, passando os dedos pela minha cabeça. Primeiro encostou no lado esquerdo, que estava dolorido com a batida mas não parecia tão machucado, então pelo lado direito, encontrando o sangue seco em meu cabelo. Ela falou em sua língua incompreensível com alguém que eu não consegui ver, e então olhou fixamente para mim e pareceu se concentrar em alguma coisa.
   Ela então começou um estranho movimento com as mãos, os dedos mostrando uma destreza inesperada, como se estivessem encostando com a ponta em objetos invisíveis, enquanto repetia palavras indecifráveis, mas que me pareciam estranhamente familiares, uma segunda língua diferente da que ela falara antes, uma palavra para cada movimento de um dedo. Ao final, as pontas de quase todos os seus dedos pareciam brilhar suavemente, e ela encostou as duas mãos em meu rosto.
   Uma sensação de formigamento começou a tomar conta de toda minha cabeça, e percebi no mesmo instante que minha dor havia desaparecido. Meu rosto todo parecia anestesiado, e a tontura foi diminuindo.
   Em seguida, ela repetiu novamente o estranho ritual, que desta vez prestei ainda mais atenção. Os movimentos pareciam semelhantes, mas não exatamente iguais, como se estivesse tocando em outros objetos invisíveis. Eu pude perceber que seus olhos - olhos verdes que poderiam perfeitamente pertencer a uma jovem humana - estavam olhando para cima enquanto ela movia os dedos com fluência e repetia palavras em sussurros, e tive a nítida impressão que estava lembrando uma sequência memorizada. Por fim, ela repetiu o mesmo processo, encostando novamente os dedos em meu rosto. Desta vez, porém, a sensação de formigamento, que já havia desaparecido, não retornou.
   - Está feito - ela falou, enquanto se levantava com a graça de um felino - em algumas horas conseguiremos falar com ele.
   "Eles falam português". Foi meu primeiro pensamento, e imediatamente percebi que não, que ela havia falado na mesma linguagem de antes, mas eu consegui entender o que ela disse.
   - Tem certeza que ele não fala Talodon?  - a voz era em um timbre mais grosso, e imediatamente associei com um adulto do sexo masculino. Eu percebi que, embora conseguisse entender o que ele havia dito, a língua em si permanecia um mistério. Era como se houvesse um tradutor automático me repetindo o que ele dizia, pelo menos foi a comparação mais próxima que consegui imaginar.
   - Tenho. Ele só tem uma língua nativa, e parece conhecer uma segunda língua, mas não é tão fluente nela. Nenhuma delas me parece familiar. Acho que vai levar horas para eu conseguir entender o que ele fala. Deve levar o mesmo tempo para ele entender o que falamos.
   Eu pensei em dizer alguma coisa, mas então resolvi ficar em silêncio. De alguma forma, ela me curou e me fez entender o que eles falavam, mas parecia achar que ainda iria levar horas para que funcionasse.
   - Faça-o se levantar, então. Ainda quero voltar para o acampamento antes do anoitecer. - Eu quase tentei me levantar quando ouvi, mas me dei conta que eles achavam que eu não entendia o que falavam. A jovem, de todo modo, pegou meu braço, e com sua ajuda eu me levantei. Só então consegui ver a quem pertencia a voz.
   O homem, não um homem obviamente, mas era mais fácil pensar nele assim, possuía um cabelo encaracolado, parecendo um pouco a juba de um leão, que descia pelos ombros, e uma musculatura impressionante, mas não descomunal. Seu rosto e corpo, como ela, pareciam a pele de um leopardo, mas quase sem manchas, quase só um amarelo, com uma poucas marcas escuras. Vestia apenas calças que pareciam o pelo de algum animal, e tinha uma espada na cintura. Havia outros também, mas alguns passos mais distantes, todos próximos de ou montados em cavalos.
   Imaginei que ficaria tonto ao levantar, mas me sentia extremamente bem. Não apenas a dor e tontura haviam passado, mas me dei conta que quase não sentia fome e frio, como antes.
   - Vamos - a jovem disse, e novamente tive que me esforçar para não reagir a sua fala, e só comecei a caminhar quando ela me conduziu pelo braço, minhas mãos ainda atadas às minhas costas.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um Estranho Mundo - Capítulo II


Capítulo II

"Em nenhum momento eu percebi qualquer lacuna em minhas memorias. Eu estava demasiado preocupado em sobreviver e entender este estranho mundo para me deter a lembrar o passado. De todo modo, tenho certeza que minha mente habilmente criaria fantasias para completar qualquer lembrança que faltasse. O cérebro humano, mesmo em sua forma pura, é realmente uma ferramenta assombrosa".


  Eu despertei confuso, completamente desnorteado, sem ter a menor ideia de onde estava. Minha cabeça latejava, e quando encostei nela com a mão, senti uma umidade que imaginei ser sangue. Meu punho esquerdo também estava doendo, e minha perna direita. O que tinha acontecido? Uma queda, algum tipo de acidente? Eu estava voando, tenho certeza... Um desastre aéreo?
   Eu olhei ao redor, o espaço era pequeno demais para ser um avião de passageiros, e estava todo destruído. Luzes de emergência iluminavam o ambiente. Um jato particular, talvez.
   Então vi os corpos. E meu cérebro fez a conexão com os nomes. Correia. Resende.
   Não precisava me aproximar para confirmar que estavam mortos. O pescoço de Correia quebrado. Resende foi pior de olhar, o corpo quase dividido em dois. Como eu sobrevivi?
   Eu me levantei de onde estava, uma poltrona, e quase desmaiei enquanto tudo começou a girar ao meu redor. E então vomitei no chão e nas minhas mãos.
   Precisava sair do jato. Podia estar vazando combustível, pegar fogo, explodir... Jato não, era uma nave. Uma nave e estávamos voltando para a Terra. Era difícil pensar, a cabeça estava doendo ainda mais. Concussão, eu pensei.
   Eu me levantei novamente, desta vez mais devagar, vi uma porta, e caminhei até ela. Engraçado, pensei, porque não estava usando um capacete, se estava vindo do espaço? Depois parei de pensar nisto, o que eu precisava era escapar.
   A tontura voltou, e então eu apaguei.

   * * *

   Eu despertei caminhando.
   Foi uma experiência diferente de um simples acordar, minha consciência retornando devagar, como se estivesse lentamente me dando conta de onde estava. Primeiro a sensação dos pés afundando na neve a cada passo, só depois o frio em meu rosto, o ar entrando gelado em meus pulmões. Depois as memorias, a queda da nave, meus companheiros mortos.
   Eu olhei para trás, apenas para ver uma longa trilha de pegadas subindo uma montanha, até se perder de vista, meus pés ainda se movendo mecanicamente, como que sem meu controle consciente. Eu devo ter saído da nave e começado a caminhar como um sonâmbulo, um resultado da batida em minha cabeça, talvez.
   Uma vez mais coloquei a mão na cabeça. O sangue estava seco agora, mas minha cabeça ainda doía. Pelo menos não estava mais tonto.
   Eu parei de caminhar e olhei ao meu redor. Hora de pensar no que estava acontecendo e no que ia fazer.
   O terreno era inclinado, e eu estava obviamente descendo. Havia neve, e algumas árvores. Percebi que parecia haver mais para baixo, eu parecia estar no que seria o limiar de uma floresta. Ao longe, podia ver montanhas, algumas muito mais altas do que onde eu estava. O sol estava em um angulo de talvez 45 graus. Estaria começando ou terminando o dia? No segundo caso, em breve anoiteceria, e imagino que faria muito frio.
   Foi só então que me dei conta de que estava em sério risco. Se já estava tão frio a ponto de haver neve, uma temperatura talvez ligeiramente abaixo de zero, quão frio ficaria de noite? Minha roupa era térmica?
   Olhei para mim mesmo. A roupa era estranha, toda de uma só cor e de um tecido estranho, mas parecia proteger bem do frio. Era a roupa que usávamos na nave, é claro. Nosso uniforme.
   Eu tinha que decidir o que fazer. Voltar para a nave? Havia mantimentos, talvez o rádio funcionasse, eu deveria esperar lá por uma equipe de resgate.
   Então me lembrei. Eu não estava na Terra, não haveria nenhuma equipe de resgate.
   Então continuei descendo, os passos tão mecânicos quanto antes, apenas meu olhar mais atento. Se estivesse terminando o dia, em mais algumas horas estaria tudo escuro, e era melhor aproveitar o tempo.
   Por sorte, o dia estava na realidade começando. Começou a esquentar perto do meio dia, a neve derretendo tornando a descida mas escorregadia, a floresta gradualmente se tornando mais cerrada.
   Algumas horas depois eu parei e sentei ao pé de uma árvore. Estava cansado e com fome. Uma ou duas vezes pensei ter ouvido movimentos de pequenos animais, esquilos ou algum animal equivalente deste mundo. Mas não tive certeza. De todo modo eu não era um caçador, nunca tinha sido sequer um escoteiro. Não tinha a menor ideia de como procurar comida.
   Ainda estava sentado, à árvore, meu pensamento divagando, os olhos querendo se fechar novamente, quanto ouvi sons, como de pessoas se movendo e conversando.
   Eu me levantei e comecei a caminhar na direção dos sons, depois a correr até me deparar com um grupo de cavaleiros no que parecia uma clareira, que, na verdade vi a perceber mais tarde, era na verdade uma estrada.
   Eu os assustei, os cavalos começaram a relinchar e eu estava prestes a dizer para ficarem calmos, que eu apenas queria socorro, quando vi seus rostos. Não eram humanos. Eram amarelos, a pele como se fosse uma pantera.
   Eu estava prestes a gritar, e meu braço direito instintivamente se estendeu, a mão apontando para um deles, por um instante eu tive a sensação de que iria explodi-lo com apenas um gesto.
   E um golpe me atingiu uma vez mais na cabeça. A inconsciência desta vez veio instantaneamente.



quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Um Estranho Mundo I


"Em retrospecto, não fazia nenhum sentido. Cair em um outro planeta praticamente igual a Terra, pilotando uma nave que mal conseguiria viajar até a lua? Qual seria a explicação para eu ter chegado até lá? Teria minha nave cruzado algum tipo de dobra dimensional, como nos filmes? Por coincidência a gravidade seria tão parecida a ponto de eu não perceber a diferença? Ar respirável, pressão normal? Mesmo aceitando tudo isto, o que explicaria a comida ser comestível? Uma evolução paralela que resultou nas mesmas divisões em plantas e animais, utilizando as mesmas estruturas celulares, os mesmos aminoacidos gerando as mesmas combinações de DNA, e resultando em seres equivalentes a répteis e mamíferos? Mesmo naquela época, eu sabia o suficiente para compreender que seria impossível. Se eu apenas parasse para pensar, perceberia que mais parecia um filme de ficção-científica de meados do século XX. O curioso é que eu nunca questionei, apenas aceitei o que vi e vivi como realidade."

* * *

  - Estamos descendo muito rápido - Correia estava suando. Ele estava monitorando a temperatura do casco, que aumentava mais e mais. Já havíamos passado muito dos limites seguros.
  - Eu sei - eu respondi - mas não podemos fazer nada por enquanto. A nave vai ter que aguentar. Resende, algum contato?
  - Nada. Mesmo antes de começarmos a descer, só captei estática. É como se não houvesse ninguém transmitindo.
  - Talvez não haja. Vocês viram o que eu vi. O planeta, eu quero dizer.
  - Deve ter sido uma ilusão de ótica. As nuvens, talvez, não deu para ver bem, mas tem que haver uma explicação racional - Resende tentava se apegar a alguma esperança. Correia só se concentrava na temperatura do casco, que continuava subindo.
  - Eu já estive uma dúzia de vezes no espaço, Resende. Você também. Não existe nenhum continente na forma daquele que a gente viu. Não na Terra.
  - Dois minutos - Correia falou - se aguentarmos mais dois minutos, acho que vamos conseguir.
  - E o que você está sugerindo? Que apareceu um continente novo do nada? Onde você acha que nós estamos? - a voz nervosa, quase histérica, de Resende, contrastava com o tom controlado meu e de Correia. Suponho que cada pessoa tenha seu jeito próprio de encarar a morte.
  - Eu não faço a menor ideia de onde estamos. Eu só sei que, seja onde for, não é na Terra.
  Correia me interrompeu - os sistemas estão entrando em curto. Não sei mais que temperatura está o casco.
  Nisto, as luzes se apagaram por um instante. Quando voltaram, a cor era ligeiramente diferente. Iluminação de emergência.
  - Quanto tempo ainda? - perguntei.
  - Está terminando, mais uns segundos, e vamos começar a sair da zona crítica - a voz de Correia contida, ele não querendo se dar esperança cedo demais - só mais uns segundos.
  - Nós vamos conseguir, nós vamos conseguir. - Resende começou a repetir, em voz baixa, como se fosse um mantra.
  - Não basta a nave resistir a temperatura. Se os motores não funcionarem, não vamos conseguir controlar o pouso - eu não queria trazer mais preocupações, mas era verdade. Os motores não foram preparados para resistir a uma temperatura tão alta. Nesta hora eu desejei que estivéssemos em uma daquelas naves antigas, aquelas que pousavam com um para-quedas.
  - Passamos o pior - Correia falou, finalmente relaxando os ombros e soltando um suspiro - a temperatura deve estar começando a baixar agora.
  - Assim que achar seguro, libere as câmeras. Não quero ligar os motores antes de poder enxergar alguma coisa lá fora.
  - Liberando sensores em 3, 2, 1. Ok. Funcionado, estamos com sensores externos. Rezende, o que você consegue identificar?
  - Ainda estamos muito rápidos, e perdendo altitude. Estamos em cima de um oceano. O computador está identificando nossa posição neste momento... Falha. Ele não está conseguindo mapear. Deveríamos estar no meio do Pacífico, mas estou vendo um continente a frente - Rezendo olhou para mim - acho que você está certo. Isto aqui não é a Terra.
  Eu não respondi, estava ocupado demais ligando os motores.
  - Sistema checando os motores neste momento. Teste geral OK... Não, agora apareceu uma mensagem de erro não identificado.
  - O que vamos fazer?
  - Não temos muita escolha, vou ligar mesmo assim.
  Eu respirei fundo por um instante, antes de ligar os motores, imaginando se não iríamos simplesmente explodir. Mas não, eles ligaram. O isolamento era tal que não sentíamos nem uma vibração, só podíamos saber que estava funcionando pelo aviso do sistema.
  - Continua aparecendo uma mensagem de falha não identificada, mas o computador já está controlando o voo. Ele está me dando um aviso para pousar imediatamente.
  - O que fazemos? - Agora até Rezende estava aparentando alguma calma, relativamente falando. Pousar uma nave com defeito era algo mais da nossa experiência, e mais sob nosso controle do que simplesmente ficar aguardando sem fazer nada enquanto torcíamos para não virarmos uma bola de fogo.
  - Vou obedecer o computador. Estou programando para ele pousar no primeiro lugar que conseguir. Não sei o que há de errado com os motores, nem sei o que mais da nave pode estar comprometido. Ele está informando que o pouso vai acontecer em uns 5 minutos.
  A tensão foi diminuindo. Ainda não estávamos fora de perigo, mas parecia que íamos sobreviver. A única coisa é que isto também significava que íamos ter que começar a lidar com o fato que estávamos em algum outro planeta.
  - Escapamos desta vez - Correia falou, soltando outro suspiro - achei que não íamos conseguir.
  - Merda - eu interrompi.
  - O quê? - ambos falaram ao mesmo tempo.
  - Os propulsores pararam. O computador vai tentar pousar mesmo assim, mas vamos ter um impacto.
  - Droga, Correia. Nunca, nunca diga que escapamos antes de já estamas no solo.
  Foi a última coisa que me lembro de ouvir de Rezende antes de tudo ficar escuro.

domingo, 13 de janeiro de 2013

O Último Rei Orco - Prólogo


   O corvo surgiu acima das nuvens, vindo do vazio nas fronteiras da criação, e começou a cair com velocidade, suas asas encostadas no corpo, os olhos fechados, as areias do deserto na beirada do mundo se aproximando mais e mais. Apenas quando o choque com o chão pareceria inevitável a quem estivesse a olhar – e tal não havia, nem criaturas nem deuses – ele abriu seus olhos, como se tivesse acabado de despertar, e, sem emitir som nenhum, começou a bater as asas até ganhar altitude, e então pôs-se a planar em uma corrente de vento.
   Ele voou veloz, carregado pelo vento, acima das areias que circulavam a fronteira do mundo, acompanhando a circunferência da terra, conhecendo todos os limites de um planeta ainda plano, ainda uma fração minúscula do que viria a ser. O mundo era jovem e mal havia começado a crescer para além da primeira árvore.
   Quase nada havia para ver, o chão abaixo do corvo areia sem fim, monótona e imperturbável. À sua esquerda, a uma distância impossível precisar, mas imutável, apenas o vazio de uma existência ainda não criada.  Somente à direita, bem distante no horizonte, o corvo podia ver algum cenário, como montanhas com cumes cobertos de neve ou a leve coloração verde de florestas.
   E assim foi que o corvo voou planando em correntes de ar, batendo suas asas apenas o mínimo necessário, até voltar a seu ponto de partida, tendo circundado todo o mundo.
   E este foi o primeiro dia.
   O corvo, então, mudou seu rumo, partindo na direção do centro do mundo, suas asas agora batendo velozes, o olhar fixo no horizonte, que começava a ganhar nova forma até se mostrar uma cadeia de montanha, a maior entre todas as do jovem mundo. Ganhando altitude a cada movimento de suas asas, o instinto lhe dizendo como aproveitar cada corrente de ar, em pouco tempo o corvo estava mais alto que a montanha mais alta, o frio da altitude não o incomodando, imensamente mais quente que o frio do nada de onde ele surgiu.
   Nas áridas montanhas quase não havia vida. Esta, que se espalhava a partir da primeira árvore, aparentemente não havia chegado até tão longe. Mas havia sons, um barulho de luta, crepitar de fogo, e o corvo soube que havia algo ali para ele presenciar, o motivo que o atraíra a montanha.
   Pousando em uma pedra perto da base da montanha, a primeira vez que o corvo tocava o solo deste mundo, ele pôs-se a observar o duelo mortal a sua frente. O dragão estava ferido e quase sem forças, as últimas labaredas que saiam de sua boca já fracas, mostrando que em breve ele não teria mais como guspir fogo. O orço com quem ele duelava igualmente no limite, feridas por todo corpo, cortes feitos pelas garras e cauda do dragão.
   O corvo observou em silêncio, sem fazer um único movimento, enquanto o combate se definia. O orço desviando-se de um ataque no último instante, para aproveitar e cravar fundo uma faca no pescoço do dragão. Este, fingindo estar agonizando para, em um movimento inesperado, gravar seus dentes na mão do guerreiro, arrancando-a com uma última dentada, apenas para ter o machado, em resposta, cravando-se em seu crânio.
   Com o combate encerrado, o orço se aproximou com sua faca da cabeça do dragão, e começou a usá-la para arrancar um de seus olhos. Tendo visto tudo que havia para ver ali, o corvo alçou vôo novamente.
   Para além do pé da montanha o corvo começou a ver sinais mais definitivos de vida, primeiro marcas verdes nas pedras, depois pequenas plantas, que se transformaram em uma floresta. Já era a noite do segundo dia, e o corvo voava por entre as árvores, sem sentir sono, fome ou cansaço, ainda não totalmente pertencente a este mundo para compartilhar das fragilidades das criações dos deuses. Desta vez o que o atraíra era uma canção na voz de uma elfa, e ele pousou pela segunda vez, agora no galho de uma árvore.
   A elfa o esperava, uma taça vazia em sua mão, gotas de soma escorrendo por entre seus lábios, o olhar perdido no horizonte. Ela parou de cantar.
   Soma era a bebida dos deuses do centro do mundo, e estes não poderiam saber de sua presença, mas a elfa era uma aliada, e ele grasnou - a primeira vez que emitia algum som – e sua voz trouxe a ela uma visão. E então o corvo partiu uma vez mais.
   E assim terminou o segundo dia.
   Para além da floresta onde os últimos elfos haviam se refugiado o corvo voou, seguindo o caminho trilhado pela raça agonizante em fuga, passando por campos queimados e abrigos destruídos, o sinal de guerra e destruição cada vez mais presentes.
   Por fim, novas ruínas começaram a surgir, diferentes dos abrigos elfos abandonados em meio a florestas, e o corvo soube que eram as cidades humanas. Uma ruína após outra o corvo encontrou, até chegar ao deserto de pedra no centro do mundo, e o corvo soube que estava próximo de seu destino, mas o terceiro dia ainda demoraria a terminar. Assim, uma vez mais o corvo pôs-se a voar ao redor de um deserto, desta vez o deserto no centro do mundo.
   A primeira cidade humana intocada que o corvo viu estava na fronteira do deserto de pedra, mas ele soube que nada havia ali de seu interesse, e não parou para lhe prestar atenção. A segunda cidade estava mais longe do deserto, e o corvo nem a perceberia, mas algo ali o atraiu, mesmo tendo ele já visto tudo que havia viajado para ver, e ele se pôs a voar na direção da primeira cidade do homem.
   Foi dentro dos muros, no alto de uma das torres da casa mais alta da cidade que o corvo pousou, quase hipnotizado pelo som que vinha de uma flauta tocada por uma mulher. Ela fingiu não olhar para ele, nem interrompeu sua música, e o corvo permaneceu a observar, curioso, certo que o instrumento que ela tocava havia sido criado por um dos deuses, quando uma dor súbita o atingiu, a primeira dor que ele havia sentido desde que entrara neste mundo.
   A mulher ainda permanecia a tocar, e o corvo se virou para ver uma criança a segurar um arco, cuja flecha recém lançada estava cravada em seu corpo, origem de sua dor. Com estranha dificuldade, o corvo abriu suas asas e partiu, a flecha pendurada em si, mortal se ele fosse uma criação deste mundo. Com dificuldade, ele se dirigiu direto ao centro do mundo, ciente de quão perto estivera de fracassar, deixando a primeira cidade do homem, a mulher e a criança para trás.
      No centro do mundo, o corvo pousou na primeira árvore, a flecha ainda trespassando seu corpo, seus olhos fixos em Wotan, que ali estava, crucificado. Ele se aproximou, e com o bico comeu seu olho esquerdo, o pagamento pelos pensamentos e memórias que então entregou com seu grasnado.
   Neste instante, Wotan se soltou da árvore, quase que sem esforço, e caiu de pé no chão, suas mãos e pés com as marcas da crucificação, e o corvo voou para seu ombro.
   Wotan se virou e agarrou um galho da árvore, e então, parecendo agora sim fazer grande força, o quebrou e usou para se apoiar no chão.
   E assim terminou o terceiro dia.