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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A Vingança de Rauthor

A princesa Elinara atravessou lentamente o grande salão vazio, o queixo erguido, os passos firmes, os olhos fixos no homem sentado no trono de Armahel. "Concentre-se em sua respiração", ela dizia, em silêncio, para si mesma. "Inspire lentamente, e depois solte o ar. Não demonstre nenhum medo". Ela tentava não olhar para o grande machado ensanguentado que ele segurava.

As suas costas, as grandes portas se fecharam, e ela ficou sozinha com o selvagem.

O homem sentado no alto do trono sorriu para ela. Ele não estava vestido como um rei. Na verdade suas roupas simples pareciam mais apropriadas a um soldado que a um homem da nobreza. A sujeira, sangue e lama misturados, só reforçavam esta impressão. Elinara repetia para si mesmo que ela era filha do Rei Balduk Darkos, e que um Darkos não temia homem algum, mas era difícil ter a mesma coragem que seu Rei. No final das contas, ela era apenas uma criança de nove anos.

"Aproxime-se, filha da Rainha de Armahel."

Elinara se aproximou ainda mais, até parar aos pés da escadaria que levava ao trono, e então parou.

"Você sabe quem eu sou?"

Por alguns segundos nenhuma resposta se ouviu no grande salão. "Sempre que estiver com medo ou nervosa, aguarde um instante para falar. Jamais deixe o inimigo perceber qualquer fraqueza em sua voz", havia lhe dito seu irmão, nem um ano atrás. "Nós somos filhos do Rei de Armahel. Nós não temos inimigos", ela havia respondido. As palavras pareciam uma piada de mau gosto, agora, com seu irmão morto, talvez pelas próprias mãos do homem a sua frente.

"Você é um Rashtir, o lider dos invasores do norte", ela respondeu. Ela não o chamaria de rei. Seu pai era um rei. Tinha coroa, e imponência. Tinha sangue nobre.

"Tem certeza? Houve uma época que chamavam sua mãe de invasora. Alinara Rashtir. Assustavam as crianças com histórias dela. Soldados preferiam a morte que cair em suas mãos, e terem os olhos arrancados, para servir de exemplo. Um casamento, algumas roupas, e ela se tornou a Rainha Alinara Darkos. Algumas roupas sujas de sangue, alguns ferimentos, e para você eu sou um Rashtir".

O que ele disse não fazia sentido, Elinara não estava entendendo. Sua mãe era uma dama da mais nobre origem, de uma das casas mais antigas do reino. Seu pai que era um guerreiro. Ela disse isto para o Rashtir, que começou a gargalhar.

"Balduk? Balduk, o fraco? Balduk, que tinha medo da própria sombra, e foi o primeiro grande nobre a se ajoelhar para sua mãe? Este era seu guerreiro?"

Ela nada respondeu. "Será que ele está louco? Será que vai me matar?". Seu irmão estava morto, seu pai também, mortos na defesa do castelo. Ela tentou não pensar nisto.

Sem nenhuma resposta sua, ele continuou a falar.

"Eu não vi sua mãe nestes últimos anos, mas me disseram que ela realmente parecia uma rainha, como se tivesse nascido para o papel. Quem ousasse mencionar que um dia ela foi Alinara Rasthir, a mulher-monstro, tinha sua lingua arrancada pelos soldados do rei. Mas eu a vi aqui, muitos anos atrás, sentada neste trono, com roupas tão ensanguentadas quanto as minhas e um machado em suas mãos. Na verdade, este mesmo machado", ele levanta o machado, mostrando-o para a princesa, "claro que ela precisava das duas mãos para levantá-lo".

"Você está mentindo. Você já matou todos eles, por que está inventando tudo isto?"

"Sua mãe está viva. Meus homens a conhecem, ou sua reputação, mas ela foi aprisionada pelos mercenários de Loth. Quando soube que eles a mantinham prisioneira, para usar como refém no ataque final ao castelo, tentei avisá-los, mas era tarde. Corpos dilacerados foi tudo que encontrei. Aprisionar Alinara Rashtir é como querer aprisionar o vento, era algo que diziam muitos anos atrás."

"Meu irmão?" ela falou, e depois fechou a boca, arrependida de ter deixado escapar. Mas ela precisava saber.

"Morto. Seu pai, morto. Seu tio Otavius, morto. Resta sua mãe, em algum lugar tentando montar um novo exército, eu imagino. E você. Em breve restará apenas sua mãe".

"Você vai me matar?"

"Sim."

Mais um silêncio. Longo. Eu tinha que tentar fugir, ela pensou, mas como, em um castelo tomado pelos Rashtir. Sua mãe podia ser como o vento, se alguma coisa do que ele dizia pudesse ser verdade, mas ela era apenas uma criança.

"Pode parecer crueldade não fazer de uma vez, mas eu tenho que lhe dizer por que você tem que morrer. É algo que nunca contei a ninguém".

"Sua mãe estava bem aqui, onde estou. Apenas três pessoas estavam no salão com ela, três crianças, paradas bem onde você está. O príncipe Rauthor Darkos, a princesa Rafaela Darkos, e eu, o menino bobo-da-corte, o amigo plebeu da princesa. Eu não sabia por que estava junto".

Elinara ouvia, atenta. Pensar na história, não em sua morte. Se pensasse que iria morrer, o pânico faria ela se mostrar uma covarde. Ela não seria covarde. Pela honra de seu pai, de seu irmão. Se sua mãe era uma guerreira de verdade, ela seria também.

"Eu iria casar com seu pai, ela disse para os príncipes. Foi uma promessa de grande rei, avô dos príncipes, o casamento que traria os Rasthir para junto de seus irmãos do sul, ela disse para os príncipes. Nas entranhas do corvo morto ao amanhecer, o sábio dos Rashtir havia visto que eu me tornaria um dia Alinara Darkos, por isto os Rashtir acreditaram nas palavras do antigo rei, ela disse para os príncipes".

Elinara nunca havia ouvido isto, em nenhuma história, em nenhuma lenda. Sua mãe, uma Rashtir? Os Rasthir convidados a se juntar e serem tratados como iguais pelos povos do sul?

"Mas foi mentira, ela disse para os príncipes. Foi apenas um truque para atrair meu povo, e massacrar a todos nós, ela disse para os príncipes. E ela continuou, contando como sobreviveu e jurou vingança, como prometeu matar todos que carregassem o sobrenome Darkos, exceto o ramo mais fraco, mais covarde da família, e que então se casaria com um deles e tomaria para si o nome. Que então se tornaria rainha, como prometido". Ele parou por um instante, respirando fundo, e então continuou.

"Então ela disse que pretendia deixar o príncipe e a princesa viverem, por serem crianças, e porque após o casamento seriam de sua família. Mas naquela manhã, nas entranhas do corvo morto ao amanhecer, o sábio Rashtir viu que, se um dos príncipes sobrevivesse, um dia ele iria se vingar nos filhos ainda não nascidos de Alinara".

Algo estava diferente em sua voz, e por um momento Elinara não soube dizer o que era, até que percebeu que ele não falava mais no sotaque do norte, no tom mais gutural que os Rasthir usavam. No tom que, agora ela lembrava, sua mãe falava quando estava zangada e gritando com algum criado. Ele falava na mesma voz cantada que ela cresceu ouvido dentro dos muros do castelo.

"O príncipe foi primeiro. Ele apenas olhou para mim, sem nada dizer, um instante antes de sua cabeça ser arrancada. Ele tinha 11 anos. A princesa tinha 9. Eu achei que depois deles, eu seria o próximo, mas ela me disse apenas para chamar os soldados para recolher os corpos. Esta é sua doce Rainha. Agora já sabe porque você tem que morrer?"

"Não". Ela respondeu e balançou a cabeça.

"Não é verdade, eu não vou morrer acreditando que minha mãe é um monstro, é isto que ele quer. Minha mãe jamais faria isto. E eu não vou implorar. Ele vai me matar de qualquer jeito.", pensamentos em silêncio. Lágrimas querendo escorrer, que ela lutou para segurar.

"Eu também matei um corvo, muitos anos depois, quando aprendi a ver o que os sábios Asthir enxergam. Eu vi a mesma visão que sua mãe viu, que se o príncipe vivesse, ele se vingaria nos filhos de Alinara". Ele se levantou, o machado em sua mão.

"E você era o príncipe. Foi o bobo-da-corte que morreu", ela falou, repetindo uma frase que parecia soprada em seu ouvido. Soprada por uma voz de criança, como a sua.

"Sim, minha sobrinha distante. Eu vi meu amigo morrer em meu nome. Eu vi minha irmã morrer sem nada poder fazer. E agora é a sua vez. Feche os olhos, prometo ser rápido".

A voz ainda parecia soprar em seu ouvido, e Elinara se via a repetir. "Eu não tenho porque fechar os olhos. Uma princesa de Armahel não fecha os olhos para seu destino. Eu sou um Darkos, e um Darkos não teme a morte".

Ele parou, o machado baixando lentamente. Sua voz era lenta, quase um sussurro, quando ele falou novamente.

"As exatas palavras de minha irmã. Ela olhou para sua mãe, e disse estas exatas palavras".

Mais um instante de silêncio, mais longo que todos os outros.

"Diga a sua mãe que ela me deve uma vida. Diga a sua mãe que não fará diferença se ela vai reunir um exército ou se esconder em um reino vizinho. Diga a sua mãe que não fará diferença se ela vai ser rainha ou guerreira. Eu vou encontrá-la, isto eu também vi nas entranhas do corvo. Parta, e leve esta mensagem para sua mãe".

Foi só então que Elinara percebeu que iria viver.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Vidente e os Três Príncipes

O velho rei viajante agonizava, prestes a iniciar sua derradeira jornada. Três Príncipes aguardavam, em vigília, a notícia de sua morte.

Melkin, o traidor, filho da doce Brunilde, rainha no exílio do reino de Terth, aguardava a chance de se tornar rei, reunir um exército e conquistar para sua mãe o trono que pertencera a seu avô.

Ledrik matador de menestréis, filho da lendária guerreira Dythra, estava disposto a duelar com qualquer de seus meio-irmãos, e se considerava o mais apto a governar o reino.

Rul, o trapaceiro, não tinha nem perfil, nem inclinação para governar. Preferia passar seu tempo em tabernas, bebendo e jogando.

Três príncipes. Um reino. Cada um de uma mãe diferente, cada um vindo de uma cidade. Todos nascidos na noite do mesmo dia, todos dizendo ser o primogênito.

"Sábio, chame o vidente Alghur", o rei disse, de repente, no meio da noite. Da última noite. Sua mão, ainda forte mesmo nesta hora, segurando o braço de seu Sábio, que aguardava sozinho ao lado de sua cama.

"Meu rei, Alghur vê o futuro, mas o futuro que Alghur vê nunca pode ser mudado e sempre se torna realidade. Não é uma boa idéia chamá-lo".

"Ainda não estou morto, Sábio. Ainda sou rei. Chame Alghur", a voz do rei sempre foi rouca, desde que uma espada quase cortou sua cabeça, mas sempre foi carregada de autoridade.

"Sim, milorde".

"E traga-me também meus filhos, os três príncipes inúteis".

E assim foi feito. Ainda antes do nascer do sol, Alghur, o vidente, e os três príncipes, estavam no quarto do grande rei, aguardando suas palavras.

"Alghur, eu quero que olhe e diga o futuro de cada um de meus filhos. Certamente, em apenas um você verá uma coroa. Os outros dois terão que aceitar e não terão porque lutar pelo meu reino, pois o que dizes sempre se torna realidade".

"Milorde, é verdade que o que eu vejo sempre se torna real, mas eu não posso escolher a visão que me será mostrada."

"Apenas faça, feiticeiro. Do contrário estes tolos destruirão meu reino após minha morte".

Alghur olhou para Melkin e disse: "Eu vejo você caído no chão, morto, apunhalado a traição por sangue de seu sangue. Você veste as mesmas roupas que está agora, creio que será ainda está noite."

Alghur olhou para Ledrik e disse: "Eu vejo uma mão soprando veneno em seu rosto, o veneno mortal do pólen de Lathus."

Alghur olhou para Rul e disse: "Eu vejo quatro caixões. Um para seu pai e um para cada um de seus irmãos. Eu vejo você no quarto caixão".

Alghur olhou para o rei e disse: "Eu sinto muito, meu rei, mas parece que nenhum dos príncipes herdará seu reinado".

O rei olhou para Alghur, todas as suas esperanças desfeitas pelas cruéis palavras. Ele tentou falar algo, mas suas forças lhe faltaram, como se as palavras de Alghur fossem como facas trespassando seu coração. Ele ainda segurou o braço de seu Sábio uma última vez e, então, finalmente sua força o abandonou.

"O rei está morto". O Sábio disse, encostando a mão no pescoço do rei, tentando sentir alguma pulsação.

"E os príncipes em breve o seguirão", disse Alghur, em voz baixa.

"Não se seu feitiço for quebrado com sua morte, feiticeiro", bradou Ledrik. Então sacou sua espada e atravessou o corpo de Alghur com ela.

Alghur olhou para Ledrik, guspiu sangue, levantou sua mão, e disse: "tolo, nunca lhe disseram que o veneno de Lathus é a arma dos videntes". Então ele abriu sua mão e soprou um pó. E morreu.

E com ele morreu Ledrik, matador de menestréis, assim conhecido porque um dia matou o menestrel que roubou o coração da mulher que ele desejava. Ledrik, que desde este dia fatídico passaria a ser chamado de Ledrik matador de videntes.

"O que vamos fazer?", Rul disse, virando-se para seu meio-irmão Melkin.

"Afaste-se", disse Melkin, recuando e sacando também sua espada. "Não pense que não ouvi as palavras do vidente. Não vou lhe dar oportunidade de me apunhalar". E Melkin então se virou e saiu correndo pela porta.

"Todos vocês morrerão esta noite", disse o Sábio, olhando para os mortos, e depois para o único outro homem vivo que restou no quarto, Rul. "Eu disse ao rei para não trazer o vidente. Sinto muito, meu bom Rul". Lágrimas corriam pelo seu rosto.

"Ninguém escapa do destino profetizado por Alghur", disse Rul, também olhando para os mortos. "Se o meu é acompanhar minha família nesta última jornada, que assim seja". E nada mais falou.

E assim foi, que o amanhecer foi marcado pelas badaladas do sino, anunciado a morte de um rei e três príncipes.

Brunilde, a doce Brunilde, que enlouqueceu no exílio, vivendo apenas pelo sonho de um dia recuperar seu trono, foi encontrada no estábulo, ainda segurando uma faca ensanguentada em sua mão. A seus pés, jazia seu filho, Melkin, o traidor, assim chamado porque traíra os votos de devoção a seu Deus para resgatar sua mãe. Deste dia em dia, foi conhecido como Melkin, o traído. Brunilde apenas repetia, incessantemente, que seu filho lhe prometera seu reino de volta, e que agora queria fugir e levá-la para um novo exílio.

Todos os nobres da corte foram ao enterro, e acompanharam o transporte de cada um dos quatro caixões. Um a um, o rei e seus príncipes seriam guardados na cripta real.

O Rei Viajante. Ledrik matador de videntes. Melkin, o traído. Rul, o trapaceiro.

Um a um, foram colocados na cripta, para seus restos mortais descansarem em meio a seus antepassados.

Os ossos do Rei Viajante passariam a eternidade junto com o dos antigos reis.

Os ossos de Ledrik seriam, muitos meses depois, roubados pela mulher que ele um dia amou, e jogados aos cães.

Os ossos de Melkin seriam, longos anos depois, transportados para Terth, para descansarem junto com os de sua mãe.

Os ossos de Rul acompanharam o restante de seu corpo, na noite daquele dia, quando ele se levantou e partiu para viver novas aventuras.