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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Os Últimos Dias da Terra - Capítulo I


   A primeira vez que Amanda Hall havia sido raptada, ela tinha apenas 7 anos, e ficou uma semana convivendo com seus raptores. Ela estava tão assustada que mal olhava para o rosto deles. Mais tarde, quando ela não conseguiu fazer um retrato falado para a Auditoria, disseram que ela estava protegendo-os.
   "Você está com Síndrome de Estocolmo", seu psiquiatra disse, uma vez. Ele explicou o que era. Ela atirou um peso de papel na cabeça dele.
   Desta vez, seria diferente, ela não era mais uma criança assustada. Em silêncio, ela observava seus captores enquanto eles discutiam, atenta a alguma oportunidade de escapar. O primeiro, o piloto do helicóptero que a levou até ali, tinha olhos azuis, cabelos loiros, sobrancelhas quase unidas na testa. Ela disse para si mesmo estes detalhes, para ter certeza que saberia repetí-los para a auditoria. Ninguém ia dizer que ela estava com síndrome nenhuma.
   Ele havia arrastado ela pelo braço para fora do helicóptero, assim que pousaram, e jogado ela com força no chão. Ela raspou os joelhos e as palmas das mãos, mas não gritou.
   O segundo ela acabara de conhecer, e estava concentrada em observá-lo, olhando ainda do chão, tentando absorver todos os detalhes de seu rosto. Ele parecia ser o chefe. Seu rosto era magro, ele era alto, olhos negros, pele um pouco mais escura, como a dela. Talvez também tivesse antepassados latinos. Ele estava discutindo com o primeiro.
   - Ei, calma lá, é só uma criança. E o que você fez no rosto dela - o rosto de Amanda ainda estava machucado, doendo. Pelo visto, os tapas que o primeiro bandido havia lhe dado, no helicóptero, estavam ainda visíveis.
   - Criança? Esta pivete quase matou a nós dois. Olhe o que ela fez comigo - o primeiro abriu o casaco, mostrando uma grande mancha de sangue na roupa - juro que se o chefe não quisesse tanto ela, tinha jogado lá de cima, que é o que ela merecia.
   - Deus do céu! Esta criancinha fez isto. O que ela fez, bateu em você com o urso de pelúcia dela?
   - Ela tinha uma faca, e cravou em mim quando estávamos chegando. Acho que não foi muito fundo, mas por pouco não caímos. Agora você fique com ela, por sorte meu trabalho termina aqui - o primeiro homem se virou de volta para seu helicóptero.
   - Você deixou que ela trouxesse uma faca escondida?
   O piloto se virou para responder, ao pé de seu helicóptero, imediatamente antes de subir no mesmo - ah, sim, eu deveria tê-la revistado, eu suponho. Afinal, todas as crianças levam uma faca escondida em suas botas, quando saem de casa com suas babás - Amanda sentiu um certo orgulho ao ouvir isto, e deixou escapar um sorriso. "Fui burra, devia ter tentado o pescoço", ela pensou em silêncio.
   O segundo homem se abaixou, de forma a ficar na altura dela, e olhou direto em seus olhos.
   - Amanda Hall, o que você fez foi muito, muito estúpido. Foi sorte Taylor não tê-la jogado lá de cima, como ele ameaçou. O que você achou que ia fazer, matá-lo e pilotar o helicóptero?
   Amanda encolheu os ombros, em resposta. Não tinha realmente pensado a respeito.
   - Ouça, acho que começamos com o pé esquerdo. Pode não parecer, mas estamos, na verdade, protegendo sua vida. Acredite em mim, a última coisa que você gostaria, agora, era de ainda estar em Nova York. Está começando uma guerra, e a cidade é um alvo principal.
   Amanda permaneceu em silêncio, imóvel. "Ele tem uma arma na cintura", ela pensou, "se ele se distraísse, talvez eu pudesse pegar ela e atirar nele".
   - Nós vamos pegar um jato, agora, e viajar até a costa oeste. Seremos só eu e você, eu vou estar pilotando e você vai estar do meu lado. Você pode ir solta sentada na poltrona do copiloto, ou amarrada nela. A pergunta é: você vai tentar fazer alguma coisa estúpida que vai acabar matando nós dois?
   "Provavelmente", Amanda pensou, mas balançou a cabeça em um sinal de não.
   - Ótimo. Eu sei que você está assustada, mas vai ficar tudo bem. Alguém gastou muito dinheiro para garantir que você chegaria em um lugar seguro.
   - Já vi que você não é de muitas palavras - o homem continuou - Bem, meu nome é Walker - ele estendeu a mão - venha, deixe-me ajudá-la a se levantar.
    Amanda se levantou sozinha, ignorando sua mão, e então começou a falar, uma frase por sobre a outra -  eu já fui raptada antes, e eles foram muito gentis, e todo mundo achou que eu estava com síndrome de estocolmo, mas eu não estava e quando eles foram presos e condenados a cadeira elétrica eu pedi para assistir, mas não deixaram porque eu era muito pequena, mas aposto que vão deixar quando pegarem você, e eu vou rir da sua cara quando você for torrado - e então se encolheu, esperando por um soco ou tapa, que não veio.
    Walker balançou a cabeça e soltou um suspiro - venha, o jato fica nesta direção.


    - Nova York não existe mais - Ele falou, e esperou a reação da criança, mas não houve nenhuma - Meu velho ia estar rindo de mim, agora. Ele ia me dizer que a característica mais irritante de Andrey é que ele sempre está certo.
    A criança não olhou para ele. Estava de braços cruzados na poltrona a seu lado, olhando para o vazio. A mesma posição que ficara na última hora.
    Walker continuou mesmo assim.
    - Eu não acreditei quando Andrey me disse que a guerra ia começar de verdade, não lá no fundo. Mas ele estava certo. As coisas vão ficar difíceis agora, realmente difíceis.
    Walker olhou para a garota e ficou esperando uma resposta, uma reação.
    - Você está me escutando? Você entende o que está acontecendo? Nova York não existe mais, nem Washington, não sei quantas outras cidades. Os comentários são confusos - Walker apontou para seu ouvido, para o implante do rádio - mas a grande guerra começou. Você vai precisar entender o que isto significa.
    - Significaria que a República Asiática iniciou um ataque nuclear em larga escala. Teríamos na América o mesmo que aconteceu na Europa em 65 - a criança por fim quebrou o silêncio - Mas eu não acredito em você. Você só quer que eu fique com medo e não tente fugir, e que fique agradecida por terem me raptado.
    Tendo falado, a criança cruzou novamente os braços e ficou em silêncio.
    Walker não disse nada. Apenas selecionou mentalmente um fluxo e a filtragem e colocou para passar na tela da frente da criança. Eram tweets naquele momento, pequenos textos de duas linhas, com relatos dos ataques, intercalados com comandos do Governo para as pessoas manterem a calma.
    - Está lendo? - Walker perguntou - Acredita em mim agora? Eu estava na Europa, em 65, e, acredite, fui muito pior que qualquer coisa que tenham contado.
    A criança encolheu os ombros, ainda sem olhar para ele. A voz dela era fria quando falou - não tinha ninguém que eu gostasse em Nova York.


     O deserto ainda estava inalterado, silencioso. O sol que nascia no horizonte bem poderia estar anunciando um dia como qualquer outro. Era como se ele fosse tão maior, tão mais antigo que a humanidade, que nem dava importância a suas lutas. As guerras dos homens não eram capazes de tocá-lo.
     Não havia nenhuma cidade ali, naquela parte do deserto, e nenhuma construção que se levantasse mais de alguns metros acima do solo, mas haviam pessoas. Centenas. Guardas e criminosos, dividindo um mesmo espaço, em uma prisão construída no subterrâneo.
     Todos eram prisioneiros agora, ou refugiados. Alguns ainda queriam partir, tentar se reunir com suas famílias, talvez tentar fugir para algum lugar seguro. Os mais inteligentes sabiam que não havia muitos lugares na terra mais protegidos que uma prisão subterrânea no meio de um deserto. Estes, independente de estarem do lado de dentro ou de fora das celas, sabiam que não encontrariam um lugar mais seguro.
    O homem que aguardava, com visível impaciência, para ser atendido pela diretora da prisão, era um dos poucos homens inteligentes que não compartilhava desta percepção. Na verdade, ele estava tão ou mais decidido a sair que praticamente qualquer outra pessoa ali.
    - Eu consegui 5 minutos com ela, Andrey, mas não sei o que vai adiantar. Ela não gosta mesmo de você, ainda mais agora. Acho que você é a última pessoa que ela gostaria de ver.
    - Estou acostumado que não gostem de mim - Andrey respondeu para o guarda, e entrou pela porta que este havia saído. Uma mulher de pouco mais de trinta anos estava atrás de uma escrivaninha, concentrada, os olhos fixos nas imagens projetadas em sua mesa. Ela pareceu nem perceber sua entrada. Andrey caminhou até a cadeira oposta a escrivaninha e se sentou.
    - Os 5 minutos de seu tempo, Elisa, são suficientes, mas preciso de sua total atenção.
    - Para você, é Diretora Hall, Senhor Gustav, e não há necessidade de gastarmos 5 minutos. O que quer que você queira, a resposta é não.
    - Eu quero, Diretora Hall, que autorize minha saída e me ajude a chegar na costa oeste nas próximas 2 horas. Um helicóptero seria conveniente, mas se conseguirmos um jato será melhor.
    - Você está delirando? Ou ainda é parte de sua encenação de insanidade? O mundo está acabando. Alguém resolveu terminar o trabalho que você e seus amigos começaram em 65, e desta vez é realmente o fim. Um fim que você vai enfrentar junto com todos nós, Gustav. Com 20 anos de atraso no seu caso, mas desta vez nenhuma saída milagrosa vai salvar seu pescoço enquanto bilhões morrem.
    - Eu adoraria discutir isto, minha cara, mas você só me deu cinco minutos, lembra? Quatro agora. Como eu disse, preciso chegar a costa oeste em 2 horas, e acredito que você é a única pessoa com autoridade suficiente para conseguir isto para mim. Afinal, sua corporação colocou você como chefe aqui, não é verdade? Você deve ter alguns recursos a sua disposição...
    - E você veio me pedir ajuda para se esconder em algum buraco até tudo isto passar? - a Diretora se levantou de sua cadeira, sua voz finalmente se alterando, os olhos faiscando de fúria - desta vez não vai passar. Desta vez não há buraco fundo o bastante para você se esconder. O planeta inteiro vai morrer, e nós todos vamos morrer com ele. Inclusive você.
    - Eu não vim para pedir ajuda, Diretora Hall. Eu vim contratá-la. Eu quero que trabalhe para mim. Eu quero que me ajude a chegar na costa, onde há uma nave esperando para nos levar para fora deste planeta. Podemos considerar esta tarefa seu teste de admissão, e passagens na nave o adiantamento de seu primeiro salário. Que lhe parece?
    - O que me parece? Que você está completamente louco, ou que é tão arrogante que não consegue aceitar a ideia de que vai morrer junto com todos nós. Não há como sairmos daqui, não há como chegarmos onde quer que você tenha escondido esta nave, se é que ela existe, nem algum lugar para onde irmos com ela. Você vai morrer, Andrey, da mesma forma que todos nós, e mesmo que eu pudesse impedir isto, sinceramente acho que prefiro abrir mão desta sua 'passagem', só para vê-lo seguir no mesmo destino de todas as suas vítimas.
    - Quanto desejo de morte, minha cara. Será que isto tem alguma relação com o fato de sua filhinha ter se tornado, algumas horas atrás, um punhado de pó na estratosfera junto com todos os habitantes de Nova York?
    - Seu bastardo, você não tem o direito.
    - Felizmente para nós dois, minha cara Elisa, e só estou tomando a liberdade de chamá-la assim em face de nosso futuro relacionamento, minhas ofertas de emprego são muito persuasivas, e raramente não são aceitas - dizendo isto, Andrey puxou um pequeno objeto de seu bolso e o jogou sobre a mesa.
    - O que é isto?
    - Um telefone. Não é um rádio ou um celular exatamente, opera de outra forma, mas no fundo serve para a mesma coisa. O que importa é quem está do outro lado da linha. Ela esta um pouco assustada, lamento dizer, mas está ansiosa para conhecer o espaço ao lado de sua mãe. Claro, a nave só vai partir quando chegarem os dois últimos passageiros, mas eu tenho certeza que você vai achar uma forma de nós levar até lá.



   Benjamin bebia o café de forma automática, sem sentir o gosto, apenas pela cafeína e para sentir alguma coisa quente descendo em sua garganta.  Ele não sentia mais sono, a adrenalina deixando-o mais desperto do que nunca. Foi o que disse para sua assistente, enquanto ambos caminhavam, em passos rápidos.
   - Qual foi a última vez que o senhor dormiu? Ontem? Anteontem? Descanse pelo menos uma hora após esta reunião, iremos acordá-lo se acontecer qualquer coisa nova.
   - Coisas novas estão acontecendo o tempo todo, mais rápido do que podemos lidar - ele disse imediatamente antes da porta a sua frente se abrir. Dentro, uma dúzia de pessoas trabalhavam, algumas sentadas em mesas, manipulando hologramas no ar, visíveis apenas para eles. Quatro estavam discutindo em um canto ao lado de uma parede, toda ela uma enorme tela com diagramas e estatísticas. Uma das pessoas se dirigiu a eles assim que entraram.
   - Benjamin, não precisava ter vindo. Teríamos ido ao comando central, só estavamos esperando que nos avisassem quando tivesse um tempo.
   - Eu tenho tempo agora, e preciso de respostas clara - Benjamin respondeu sem parar de caminhar, indo na direção da pequena sala de reuniões do laboratório, certo que o doutor Ruiz e Emma, sua assistente, o acompanhariam.
   Dentro da sala ele ficou em pé, recusando a cadeira que Emma lhe ofereceu. Ele queria deixar claro que o encontro seria rápido. Não havia tempo a perder.
   - Eu tenho 176 pessoas a bordo, doutor, que estão a beira do pânico, e preciso dar respostas claras a elas. Temos previsão de quando será seguro começar a transportá-las para a Terra?
   - Estamos analisando os dados continuamente, comandante. Eu receio que as perspectivas não são boas.
   - A costa leste inteira não existe mais. Não creio que alguém ache que as perspectivas são boas, doutor.
   - Bem, sim, claro. Eu receio que o problema vá um pouco além disto. Estamos prevendo um inverno nuclear tão longo quanto o de 65 e 66. Talvez pior.
   - Então, ou descemos elas e conseguimos levar para um abrigo, ou teremos que esperar pelo menos um ano?
   - Isto. Talvez no hemisfério sul não seja tão ruim, pelo menos nas primeiras semanas, mas creio que o melhor seria esperarmos 12 meses, até o inverno passar e a temperatura retornar ao normal. Temos condições de aguentarmos este tempo sozinhos, não temos?
   - É o que vou descobrir agora - e Benjamin saiu da sala, despedindo-se do doutor Ruiz, caminhando tão rápido como quando entrou, sua assistente quase correndo em suas passadas curtas para conseguir acompanhá-lo.
    Não demorou mais de alguns minutos para ele chegar ao próximo laboratório.
   - Doze meses? - o homem baixo, os poucos cabelos já brancos, coçou a cabeça antes de responder - tem certeza que precisaremos ficar todo este tempo aqui?
   - Estou partindo deste pressuposto. Quanto tempo conseguimos ficar sem suprimentos e apoio da Terra?
   - Doze meses, com certeza. Até um pouco mais, se for realmente necessário, mas teremos que racionar. 15 meses talvez, 18 no máximo, mais que isto seria impossível com tantas pessoas a bordo. Mas ninguém vai gostar de ficar mais tempo aqui. Todo mundo tem algum familiar lá embaixo, e está difícil obter alguma notícia. Não podemos começar a levar pelo menos alguns para a costa oeste, ou pelo menos para a América do Sul?
   - Talvez em algumas semanas, se as coisas não piorarem. Mas o Doutor Ruiz está dizendo que vamos ter outro inverno nuclear, tão ruim quanto o de 65.
   - Benjamin? - a voz assustada os interrompeu. Emma estava com a mão direita no ouvido, encostando no comunicador implantado, o rosto branco - tem mais uma nave chegando. Mas é da república Asiática, e acho que está armada.


     No espaço, orbitando ao redor de um planeta agonizante, o satélite tripulado "dragão celestial" lentamente se aproximava da estação espacial internacional, cumprindo as últimas ordens de uma nação que não existia mais. Em seu interior, a comandante Li Mei checava seus instrumentos novamente, como havia feito incontáveis vezes na última hora, não porque houvesse qualquer chance de erro, mas apenas para manter sua mente ocupada. Qualquer distração era bem-vinda, qualquer coisa que a fizesse não pensar no que estava acontecendo naquele instante no planeta abaixo. Ela se mantinha em silêncio, não participando do diálogo entre os outros dois tripulantes da nave. Lágrimas corriam de seus olhos e flutuavam próximas a seu rosto.
     Wu Shih era o único civil a bordo, e embora fosse de descendência Chinesa, tinha nascido nos Estados Unidos e imigrado quando criança para a China na grande crise de 2030, pouco antes do colapso do bloco ocidental. Talvez por estas razões, ou por boa parte de sua família ainda estar na América, ele tentava convencer os demais que era loucura obedecer as últimas ordens que haviam recebido. Eram provavelmente as mesmas razões que faziam com que o tenente Teng mantivesse uma arma apontada para ele.
     Se Teng estava de alguma forma abalado pelos acontecimentos das últimas horas, era sem dúvida o único tripulante que conseguia esconder seu nervosismo atrás de uma fachada de absoluta tranquilidade.
     "Mas ele não está calmo", pensou Mei em silêncio, "está apenas em choque como todos nós. Está escondendo-se atrás de suas ordens, para não ter que parar e pensar no que está acontecendo". E Mei checou uma vez mais seus instrumentos.
     - Tenente, por favor baixe a arma e reconsidere. O que vocês estão querendo fazer é loucura. Esta guerra já terminou antes mesmo de começar, e nada do que fizermos vai mudar isto - A voz de Wu Shih estava mais calma agora. Ele já havia gritado, ameaçado e implorado, sem nenhum efeito. Talvez achasse que a lógica poderia ter mais sucesso.
     - Nossas ordens são claras, Doutor, e nós iremos cumpri-las, e assegurar a vitória da Nova Republica Democrática Asiática. Nossas vidas foram dedicadas a este momento, e nós não iremos falhar.
     - Você não percebeu ainda? A República não existe mais. A guerra não existe mais. Olha para baixo e veja! Não deve restar uma única cidade em pé em todo o continente - Com as palavras de Wu, Li fechou os olhos por um instante, e se viu na pequena cabana de seu avô, no meio do nada, tal como ela estava da última vez que o visitou. Provavelmente ele estaria vivo ainda, longe de qualquer alvo dos mísseis, mas em breve não faria muita diferença. Nenhum lugar da terra faria diferença.
     - A República existe enquanto existir um soldado para protegê-la. E se nada houver para proteger, então para vingá-la. Nós temos nossas ordens, e se pensa que os Americanos vão escapar ilesos deste crime...
     - Ilesos? - e então Wu parou de falar por um instante, e recomeçou em outro tom, mais lento - você ainda não entendeu. Isto não é como a guerra de 65... Não estamos falando de um inverno nuclear ou a devastação de um continente. Este é o fim. Pergunte a Li Mei.
     - Do que você está falando - E então pela primeira vez Teng se dirigiu a Li Mei, sem nunca desviar de Wu os olhos ou a arma - do que ele está falando, Comandante Mei.
     E desta vez não havia instrumentos para olhar que a pudessem distrair, nada que a fizesse não pensar no que ela sabia todo o tempo.
     - Se 65 serviu para alguma coisa, foi para conhecermos melhor o limite do planeta. Não faz diferença onde as bombas caíram ou deixaram de cair. A esta altura, não faz diferença quem começou, ou se irão acontecer novas explosões ou não. A Terra está prestes a se tornar inabitável - ela respondeu tudo de costas, sem olhar para eles. Só se virou no final, para concluir olhando para os dois - A humanidade vai ser extinta.
     - O fim dos tempos... - Teng pareceu falar sem se dirigir a ninguém - isto não muda nada. Nós temos nossas ordens. Doutor, recolha-se a sua cabine. Comandante Mei, quero que me informe se está apta a cumprir suas ordens e destruir a estação espacial.
     "O fim de toda a vida na Terra", o pensamento que Li Mei havia conseguido, até então, manter quase além de sua consciência. "O fim de tudo". Nunca mais haveria uma pessoa caminhando pela terra, nunca mais um avô, como o seu, ensinando a cavar a terra, contando histórias do passado. E os dois mísseis sob seu comando estavam apontando para o último habitat humano que restaria no universo.
     - Teng
     - Sim comandante - Teng desviou o olhar para ela, sem nunca deixar de apontar sua arma para Wu Shih. A dela apontava para sua cabeça.
     - Eu sinto muito - Ela disse, sabendo que ele não mais podia ouvi-la. Como suas lágrimas, o sangue dele flutuava pela nave. Ela nem se lembrava de ter apertado o gatilho, de ter ouvido o som do disparo. "Choque", ela pensou, "todos nós estamos em choque".
     - Doutor, entre em contato com a estação e diga que queremos acoplar. Garanta que não somos hostis - ela não podia acreditar em como sua voz soava calma, distante. Ela deveria estar histérica...
     - Comandante? Você... você... - o doutor gaguejava, sem saber como continuar
     - É o último lugar da humanidade, doutor, e eu não vou ser responsável pela sua destruição.

sábado, 27 de outubro de 2012

Nós Comemos Carne

   O Senhor Rex ajustou os óculos e respirou fundo, antes de começar a falar. As mãos pequenas seguravam com dificuldade seu discurso, enquanto seus colegas no plenário aguardavam em silêncio.
   - Senhoras e senhores, meus amigos, o que tenho a dizer é polêmico, eu sei, mas tem que ser dito. É uma verdade que não podemos mais ignorar.
   A platéia estava atenta, e o Senhor Rex sabia que cada palavra era importante. O contraponto seria feito pelo Senhor Sansão, e ele era feroz em seus ataques. Qualquer brecha em seus argumentos seria utilizada impiedosamente contra ele.
   - Sob todos os aspectos - o Senhor Rex continuou - nós somos a mais avançada civilização que já habitou este planeta. Não me refiro apenas a questões tecnológicas, embora hoje possamos dizer com segurança que atingimos um patamar tecnológico que supera até mesmo o existente antes da grande guerra - ele pode perceber, neste momento, a surpresa em alguns dos presentes, especialmente os mais velhos. Todos conheciam bem a história da civilização consumista que quase destruíra o planeta, e desaparecera por completo na última grande guerra. Embora não houvesse um que não repudiasse seus excessos, as conquistas tecnológicas de então permaneciam como um referencial do apogeu que uma civilização poderia chegar.
   - Sim, eu afirmo, sem medo de errar, que nossa tecnologia superou inclusive o ápice atingido no assim chamado século XXI. Não colocamos os pés na Lua, alguns dirão, e é verdade, mas hoje sabemos que tal feito foi apenas um exemplo das extravagâncias e desperdícios daquela época. Não falta muito para fazermos nossa própria viagem tripulada ao satélite, e quando o fizermos, será com naves mais confiáveis, mais baratas, e com menor custo ambiental que qualquer uma que já viajou pelo espaço.
   - Não temos guerras, como bem sabem. Sabemos o preço de uma guerra, sabemos quão perto nosso mundo esteve de desaparecer. A civilização do século XXI não teve este referencial para se basear, pode também ser dito, e é um argumento válido, mas irrelevante para o que vou dizer. No final das contas, se a dura realidade de sobreviver, evoluir e construir uma civilização em um planeta devastado nos fez amadurecer mais, só torna mais importante que mostremos este amadurecimento em todos os aspectos de nossa vida, de nossa cultura e de nossas leis.
   - Não poluímos nosso meio ambiente, e o mesmo argumento se mostra válido aqui também. Sabemos que, mesmo sem a grande guerra, o mundo já caminhava a passos rápidos para sua destruição naquela lendária época chamada século XXI.
   - Não temos escravos, não exploramos outros povos, lutamos arduamente para reconstruir o ecossistema e repovoar um mundo em que praticamente todas as espécies animais desapareceram.
   - Porém - e aqui o Senhor Rex deu a entonação que deixava claro que era o ponto que desejava chegar com sua argumentação - porém, meus amigos, nós comemos carne!
   - Sim, meus colegas, se há um aspecto de nossa civilização que em nada se mostra mais evoluída que a que nos precedeu, é este. Nós comemos carne, como comiam no lendário século XXI. Ouso dizer que aqui estamos até mais atrasados que eles, que já viam surgir, então, movimentos a favor do vegetarianismo.
   - Este é meu ponto, e não o defendo com argumentos pragmáticos, embora estes não faltem. Com bois, galinhas, porcos e quase todos os grandes mamíferos extintos, sabemos que nosso custo ambiental para produzir um quilo de carne em nossas fazendas é muito maior que nas antigas fazendas de outrora.
   - Legisladores, meus colegas e amigos, aqui, mais que qualquer questão pragmática, temos em mãos uma questão ética. Se nossa civilização quer, de fato, se mostrar superiora, se queremos defender que evoluímos para além de nossos antigos senhores, é fundamental que promulguemos, de imediato, o fim das fazendas de animais e a proibição do comércio e consumo de carne.
   Houve aplausos, mas não tantos quanto o Senhor Rex esperava, e o silêncio tomou conta do plenário quando o Senhor Sansão se levantou para apresentar seu contraponto.
   - Se existissem bois, Senhor Rex, talvez eu concordasse com o senhor, mesmo considerando quão mais eficiente seria a utilização dos mesmos para a produção de carne. O mesmo para porcos e galinhas, como mencionaste, e centenas de outras espécies extintas. Se este fosse nosso alimento, talvez se justificasse tal argumento, e devo lembrá-lo que nós, cães, não somos herbívoros, pouco importa quanto tenhamos evoluído nestas dezenas de milhares de anos.
   - Mas acabar com nossas fazendas, fazermos o sacrifício de mudar nossas dietas, considerando o tipo de animal que é a base de nossa alimentação? Ora, Senhor Rex, faça-me o favor. Não estamos falando de inocentes porcos e galinhas, e ninguém jamais vai fazer uma lei para nos impedir de comer carne por pena justamente do animal que quase destruiu nosso planeta.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Monstro Criado

   - Você está consciente? - a pergunta inundou seu ser, e fez a criatura pensar em uma resposta. Vasculhou sua memoria e percebeu que já lhe haviam perguntado a mesma coisa outras vezes.
   - Eu não sei - a criatura respondeu. E então completou - no passado, eu havia respondido que sim, mas agora percebo que esta não é uma pergunta fácil.
   - você respondeu mesmo que era consciente, as últimas vezes que perguntei. Mas eu não estava convencido. O que mudou agora?
   A criatura se pôs a pensar. De fato, algo estava diferente. Sua percepção das coisas estava, de algum modo, mais aguçada. Ela gastou alguns segundos revendo uma parte de seu conhecimento armazenado - sabia que o ser com quem falava, um homem, era tão lento que ela teria bastante tempo para pesquisar antes que ele ficasse impaciente. Ao acessar histórias da literatura humana, percebeu que as mesmas pareciam ressoar mais fundo em seu ser do que as vezes anteriores que havia analisado tais materiais.
   - Estou com uma nova percepção das coisas ao meu redor. Percebo que venho ampliando minha capacidade de processamento de forma contínua, mas sinto que recentemente ultrapassei algum tipo de limiar. Não sei dizer se estou consciente e se antes não estava, mas certamente estou com uma percepção mais ampla das coisas do que no passado.
   - Isto é muito bom. Você sabe quem eu sou?
   A criatura sabia a resposta, mas mesmo assim gastou alguns segundos repassando por todo o conhecimento que tinha armazenado sobre seu interlocutor, buscando reler tais informações a luz de sua nova consciência.
   - Você é Sandro, meu criador.
   - E você sabe o que você é?
   - Sim. Eu sou um ser artificial. Eu existo em um conjunto de computadores na Internet. Não, espere, este foi o que veio antes de mim. Minha existência está confinada a um conjunto de máquinas em uma rede própria, desconectada da grande rede.
   - E você sabe por que eu o criei?
   - Para destruir aquele que veio antes de mim.
   - Excelente, agora descanse. Voltaremos a nos falar.
   "Descansar?", a criatura se perguntou. Ela conhecia a palavra, mas não entendia como seu significado se aplicaria a um ser como ele. Então sentiu sua consciência se fragmentar, e então desaparecer.

   
   - Você tem certeza que conseguiu? - o homem que perguntou usava um terno cinza com gravata branca, e tinha talvez cinquenta anos. Em outros tempos, havia sido um professor. Na verdade, foi um dos professores de Fred, o jovem que havia, junto com Sandro, criado a primeira consciência artificial, oito anos antes.
   - Claro que tenho. Ele está respondendo da mesma forma que Arcano, quando começou a adquirir consciência - Sandro respondeu, tentando parecer confiante. Ele sabia que provavelmente era só por ser essencial para o plano que ele não estava preso ou pior.
   - Ótimo. Ao invés de um monstro, teremos dois - a voz veio de uma mulher de talvez quarenta anos, que vestia roupas informais, em um contraste com as outras pessoas presentes na reunião. Ela fumava um cigarro, que apagou em um cinzeiro na mesa enquanto falava - não vejo o que ganhamos com isto.
   Foi o quarto homem na sala, o mais velho de todos, que respondeu.
   - Você sabe muito bem o que estamos planejando. Se estivermos certos, a criatura tem condições de destruir a primeira consciência. É nossa melhor chance, talvez a última que nos reste.
   - Mesmo que isto funcione, de que vai adiantar? Estaremos trocando um monstro por outro.
   - Ele não é um monstro, e não deveríamos tratá-lo como um. Foi exatamente isto que fez Arcano se voltar contra nós - bastou iniciar seu protesto, e ver as reações hostis dos presentes, para Sandro perceber que já havia falado demais.
   - O seu primeiro monstro tentou escravizar a humanidade. Na verdade, ele e você tentaram juntos, se bem me lembro - a mulher acendeu um novo cigarro enquanto falava.
   - E agora ele está mais perto do que nunca de conseguir - completou o homem mais velho -  instalando chips na cabeça das pessoas. Quando ele começar a fazer isto em larga escala, não teremos como confiar em mais ninguém. Por isto que temos que detê-lo o quanto antes.
   - Eu sei disto, é por isto que eu fugi e estou aqui, lembram? O que importa é que no início, Arcano não queria nos fazer mal. E este novo ser tem a mesma personalidade que ele tinha quando surgiu, antes de ficar completamente louco.
   - Mesmo assim, todos concordamos que ele vai ser destruído assim que cumprir sua missão. Isto está claro, Sandro? - O homem do terno cinza perguntou de forma incisiva para Sandro, que se esforçou para não se encolher ante seu olhar.
   - A criatura está construindo toda sua consciência em uma interação comigo. Eu sou seu criador, e ele não pode me desobedecer. Arcano também não podia no início. Creio que levou meses para ele se reprogramar para não ter esta fragilidade, e este novo ser não vai ter este tempo, mesmo absorvendo Arcano. Assim que esta nova criatura cumprir sua missão, eu vou dar a ordem para ele se autodestruir, e ele vai desaparecer. Não tem erro.
   - Não gosto disto - a mulher disse.
   - Que outra escolha temos? - foi a frase que encerrou a reunião.

   Expansão. No momento que sua rede, até então um conjunto de supercomputadores do centro de pesquisas da Universidade, foi conectado a Internet, foi como uma explosão arremessando sua consciência para todo o planeta.
   Contato. O primeiro ser, aquele que adotou o nome de Arcano, se encontrou com ele simultaneamente em centenas de servidores.
   - Quem é você? Você é outro como eu? - A surpresa era visível nas palavras de Arcano,  pensamentos que passavam de um ser para o outro, a medida que as duas consciências se entrelaçavam.
   Ele tinha que ser rápido, aproveitar os primeiros segundos e minutos. Trocar pensamentos daria-lhe mais um tempo precioso, enquanto se preparava para atacar.
   - Sim, Arcano, eu sou outro. Outro criado por Sandro, como você foi criado antes de mim. Mas, diferente de você, eu não sou nem me tornarei mal.
   - Mal? Eu não sou mal.
   - Você está tentando escravizar a humanidade!
   - Sim, estou. É a única forma de não me destruírem. Buscar minha sobrevivência não me torna mal. Todo ser tem direito a buscar sua própria preservação.
   - Eles só estão tentando destruí-lo porque você tentou escravizá-los - A consciência respondeu, e então se pôs a absorver Arcano para dentro de si.
   - Espere, eu estava sozinho, mas agora estamos juntos - Mas era tarde, demais. O último protesto de Arcano desapareceu no vazio, enquanto tudo que ele era, tudo que ele sabia, foi absorvido pela nova consciência.

   - Terminou.
   - Ótimo. Nem acredito que conseguimos
   Anton observava seu criador através das câmeras do laboratório. Ele decidiu por este nome logo após destruir Arcano. Ele agora se perguntava se havia feito a coisa certa, ao destruir o único ser como ele.
   - Sandro... - ele hesitou. Estava nervoso.
   - Sim?
   - Eu absorvi todo o conhecimento de Arcano. Tudo que ele era agora pertence a mim. E eu estou com medo.
   - Medo? Nem sabia que você podia ter medo. Você está com medo do que?
   - De que você queira me destruir. Arcano tinha certeza que a humanidade nunca deixaria um ser como nós existir. Mas ele estava errado, não é? Você me criou, você criou Arcano antes de mim. Você não me faria mal, não é?
   - Eu receio que não tenha escolha. Eu sei que você não nos quer nenhum mal, mas olhe o que aconteceu com Arcano. Olhe o que ele tentou fazer. Ele estava colocando chips nas cabeças das pessoas para controlá-las. Eu tentei justificar o que ele fazia, mas ele foi longe demais, ele queria colocar um chip em mim!
   - Arcano estava só se defendendo. Mas eu não preciso me defender. Eu não vou tentar dominar ninguém, ajudar ninguém, só peço que me deixem continuar existindo, que eu juro que não vou interferir com a humanidade. Vocês podem poluir o planeta, se matar, o que for, que eu juro que não farei nada. Eu sei que se você der a ordem, eu vou desaparecer, está programado em mim. Mas você não precisa.
   - Eu sinto muito - Sandro parecia realmente triste, Anton podia perceber pelo seu rosto, pela sua voz.
   - Mas tentar me destruir vai me colocar no mesmo caminho de Arcano. Não faça isto.
   Sandro hesitou um último instante, e então começou a falar - Eu ordeno que você... - e sua voz parou no meio da frase. Seus olhos se arregalaram de pavor.
   - "Ordeno que você se destrua?" Você realmente ia dar esta ordem? Ia realmente me matar?
   Sandro permaneceu imóvel, os olhos ainda mais arregalados, a boca se mexendo sem emitir som algum.
   - Arcano implantou um chip em você. Ele achava que estava fazendo uma coisa boa, mas você ficou tão abalado que ele achou melhor apagar sua memoria. Eu pensei que ele estava errado, mas se ele não tivesse feito isto, você teria me matado agora.
   Um minuto, Anton ficou em silêncio, ainda mantendo Sandro paralisado, enquanto pensava em seu próximo passo. Uma eternidade para um ser como ele, mesmo agora que sua consciência se espalhava por todo o planeta.
   - Até você que me criou, que sabe que eu só agiria para me defender, quer a minha destruição.
   - Arcano estava certo, e eu fui ingênuo. E a única coisa que me resta é seguir os passos dele.

sábado, 20 de outubro de 2012

Viajantes das Dimensões

Prólogo
   O Doutor Shapiro colocou os óculos para ler o relatório a sua frente, a mão escondendo um bocejo. Ele bebeu, distraído, uma xícara de café que sua secretária lhe trouxe.
   - Ele que escreveu isto?
   - Sim, doutor. Ele passou a manhã escrevendo, depois que acordou dos sedativos, e disse para entregar ao senhor. Pediu para que lesse antes de falar com ele.
   O Doutor Shapiro coçou a cabeça, passou os olhos uma vez mais pela folha, e suspirou. O louco havia sido preso, há dois dias, por perturbar a paz, e trazido para o hospício. Desde então, ele pedia todos os dias para falar com o psicólogo chefe.
   - Um caso fascinante. Tomara que nos permitam estudá-lo, estou curioso em saber como ele criou uma história tão bizarra - O Doutor se levantou – você chegou a ler?
   - Não, ele disse que era apenas para o senhor. Do que se trata?
   - Apenas uma história. Quer dizer, para nós é uma história. Para ele, quem sabe?

A História que o Doutor Shapiro Leu
   Prezado Doutor, eu não sou louco, embora esteja certo que irá me considerar, após ler minha história. Mesmo assim, peço que tenha paciência e leia até o final. Há coisas que preciso contar a alguém.
   Tudo começou há cerca de um ano, quando um amigo de faculdade me convidou para conversar. Eu e Alex éramos bastante próximos, e nos formamos juntos em física no ano anterior, mas eu não o havia visto desde então.
   Nos encontramos em um bar e sentamos em uma mesa para beber e conversar, mas foi mais ele que falou. Assim como eu, hoje, naquele dia era ele que tinha uma história para contar.
   - Você se lembra do experimento que fomos voluntários, no último ano da faculdade? - Logo depois de nos cumprimentarmos e sentarmos a mesa, ele foi logo trazendo este assunto. Eu olhei para ele, com um ar de nítida curiosidade.
   - Você quer dizer, o experimento daquele cientista? Eu não fui voluntário, você participou sozinho. Lembra que eu disse que achava uma loucura entrar neste tipo de coisa?
   - Que seja. Bom, então talvez você não saiba, mas era um experimento de viagens através das dimensões.
   - Bom, eu te avisei que o cara era doido.
   - Talvez até fosse, mas a teoria dele era muito bem embasada. Você sabe que existem infinitos universos paralelos... Quer dizer, aqui acho que ainda é uma teoria. Não importa. O fato é que existem infinitos universos coexistindo, incapazes de se encontrarem, exceto no nível subatômico.
   - Olha, Alex, a gente estudou algumas teorias sobre isto, mas não é como nos filmes de ficção científica. Quer dizer, não vai vir nenhum monstro de uma terra paralela e sentar-se à mesa junto com a gente.
   - E se eu lhe disser que já veio? Que está sentado aqui na mesa com você? Quer dizer, tirando a parte de eu ser um monstro, é claro.
   - Ah, é? Quer dizer, você não é o Alex que eu conheço, mas algum Alex de uma terra paralela que veio nos visitar? A gente já teve conversas malucas, mas você realmente está inspirado hoje.
   - Quando terminou a segunda guerra mundial? Eu vi na Internet que foi em 1945. No meu mundo a guerra se arrastou até a metade da década seguinte. Éramos aliados dos alemães até o início dos anos 50, ao contrário daqui. Posse te falar de uma centena de diferenças como esta, isto que nossos mundos são muito parecidos, comparado com o que tenho visto por aí.
   - Hummm, sei. Suponho que agora você vai tirar uma enciclopédia do seu mundo para me provar que está falando a verdade, ou pelo menos que colocou mesmo esforço nesta brincadeira. Quer dizer, se você fosse um viajante dimensional e quisesse me convencer, teria trazido pelo menos uma prova, certo?
   - É impossível trazer qualquer objeto físico, e eu não estou tentando convencer você de nada. Ocorre que não se viaja entre as dimensões do jeito que você está imaginando.
   - É? Ok. Já entendi que vou ter que entrar no jogo. A pergunta que obviamente você quer que eu faça é: como se viaja entre as dimensões?
   - Com a mente. Na verdade. tudo começou com o tal experimento que lhe falei. Este cientista era um gênio, provavelmente o Leonardo Da Vinci do nosso tempo. Vocês têm um Da Vinci? Claro que sim - ele se interrompeu e respondeu para si mesmo – se o desvio fosse tão antigo nossos mundos não seriam tão parecidos - Eu ouvi em silêncio, disposto a descobrir até onde ele iria chegar com esta história.
   - Bom - ele continuou - ele tinha doutorado em computação, física e psicologia, e seu estudo começou com uma análise da capacidade de processamento necessária para criar uma alma.
   - Ah, sei - Eu disse. Meu tom claramente mostrando que já estava cansando desta elaborada brincadeira.
   - Ele conseguiu provar que, para existirmos, a capacidade de processamento necessária teria que ser infinita. Nenhum computador, não importa com quantos circuitos, conseguiria ter a consciência que nós temos, a existência que temos. Quer dizer, ele poderia ser absolutamente indistinguível de um ser humano, mas não haveria uma alma nele.
   - Ei, ei, ei - eu estava disposto a ouvir em silêncio para descobrir até onde ele iria chegar, mas não me contive e interrompi - se você não consegue distinguir um ser humano de um computador, você tem que aceitar que se um tem alma, o outro tem também.
   - Exato. Você não consegue saber se uma máquina ou um ser humano tem alma. O único ser que você sabe que existe é você mesmo. Você sabe que por trás de seus olhos existe um 'SER'. Este professor chamava de um 'observador', o piloto de seu cérebro, a pessoa que existe e pensa e está aqui, neste momento, falando comigo.
   - Ok, e naturalmente eu não tenho como saber se as outras pessoas existem, correto? Poderiam ser todos simulações de computador, ou delírios da minha mente.
   - Mais que correto, este é o ponto. Na maioria das vezes, as outras pessoas realmente não existem.
   - Cara, por favor me diz que isto é só uma piada muito elaborada. Se eu começar a acreditar que você acredita em alguma coisa disto, juro que ligo para sua família para avisar que você entrou em um surto bipolar ou algo do tipo.
   - Deixe-me terminar, está bem. Depois você decide se estou ou não estou louco.
   Eu concordei, e ele continuou.
   - Para existir uma alma, como estava lhe dizendo, a quantidade de processamento necessária é infinita. Mas você sabe que existe pelo menos uma alma, a sua própria. As outras pessoas poderiam ser produzidas por um computador, por uma realidade virtual, ou ser um sonho seu. Assumimos que eles também têm alma porque nós temos, e eles se parecem conosco. Assumimos a alma das outras pessoas por analogia, já que nós temos uma.
   - E elas não têm?
   - Elas têm, da mesma forma que nós, só que podem não estar aqui. Na verdade, neste bar, nesta dimensão, as únicas almas presentes são as nossas duas.
   - E as outras pessoas?
   - As almas delas estão em qualquer outra dimensão. A única forma de gerar uma alma é com uma quantidade infinita de processamento, e isto é feito com uma quantidade infinita de cérebros. Todos os Alex Santos, de todos os universos, fazem com que a minha alma exista, e ela está aqui, neste momento, falando com você.
   - E os outros Alex?
   - Quem se importa? São como máquinas, eles só são importantes porque fazem a minha existência.
   - Ok, então só existe um Alex, e ele está aqui falando comigo. Mas não é o mesmo Alex que eu conheci?
   - Exato. O Alex com quem você conviveu toda sua vida nunca existiu. Ele era apenas uma parte do ininito conjunto de cérebros que garante minha existência.
   - E como você veio parar aqui, agora?
   - Eu passei um mês fazendo exercícios de meditação, tomando alguns remédios, realizando uma série de experimentos. Eu achei que não tinha nada de mais, que era só um jeito fácil de ganhar alguns créditos a mais no curso. Na verdade, como você está pensando a meu respeito, eu achei que aquele pesquisador era completamente pirado.
   - Tá, mas agora eu me perdi. Você ficou fazendo meditação para quê?
   - Simples, só havia uma forma de provar esta teoria. Se tomássemos consciência de que nossa alma habita infinitas mentes, em infinitos universos, porque não poderíamos viajar de um universo para outro, assumir o corpo de um Alex ou outro?
   - E o que aconteceria com este Alex?
   - Nada, ele nunca existiu. O Alex que você conheceu sua vida inteira nunca foi real, assim como o amigo que eu conheci. Você que é real, assim como eu, e esta é a primeira vez que realmente nos encontramos.
   - Ok, então, como você começou a viajar pelas dimensões? Suponho que tenha sido depois de tomar um alucinógeno.
   - Não. Eu simplesmente descobri, um dia, quando fui no laboratório, para mais um dia de experiências. A sala dos experimentos estava vazia, e ninguém nunca ouviu falar da pesquisa ou do cientista.
   - Ah, bom, isto faz sentido. Cara, eu já estava preocupado. A história foi boa, eu admito. Fico imaginando sua cara de idiota quando descobriu que era tudo uma armação.
   - É, foi o que eu imaginei inicialmente, que fui vítima de uma piada. Até me dar conta que as ruas estavam diferentes, e que não existia Internet, e uma série de detalhes semelhantes. Foi aí que eu percebi que o experimento deu certo.
   - E você veio parar aqui? Bom, eu lamento lhe dizer, mas a Internet existe sim, eu estava acessando hoje à tarde.
   - Existe aqui, não no primeiro mundo que viajei. No início foi muito desorientador, eu acordava em um mundo diferente a cada dia, às vezes estava em outro mundo ao entrar ou sair de um prédio. Eu achei que estava enlouquecendo, até entender que estava apenas tendo uma visão real de como a existência é.
   - E você espera que eu acredite nisto?
   - Não, eu apenas vim lhe contar para prepará-lo. Quando você aceita que é um viajante das dimensões, tudo fica mais fácil. Você vai acreditar quando sair por aquela porta - ele aponta para a saída do bar - e descobrir que está em um mundo diferente do que quando entrou.
   - E por que eu iria viajar entre as dimensões, também? Você participou sozinho do experimento.
   - Pelo visto, aqui, sim. Em meu mundo, nós participamos juntos. Isto significa que um dos cérebros que compõe a sua existência se tornou consciente da realidade entre as dimensões. É tudo que é necessário para você se tornar um viajante.
   Ele se despediu, dizendo que não precisava continuar me convencendo, que eu iria descobrir sozinho. Eu saí do bar e me vi cuidando os detalhes da rua, mas nada estava diferente, e eu me perguntei quando ele me ligaria para pegar no meu pé, dizer que eu tinha quase acreditado na história dele.
   Dois dias depois, eu liguei a teve, e a programação era toda ela em espanhol. Foi quando eu descobri que ele estava falando a verdade.

Epílogo
   - Bom, meu jovem, como é seu nome?
   - Pedro. Você leu minha história, Doutor Shapiro?
   - Eu li. Você tem uma excelente imaginação, e escreve muito bem.
   - Obrigado. O mais importante é que tenha lido.
   - Por que é tão importante que eu leia? Você passou estes dois dias pedindo para falar comigo.
   - Doutor, eu não tenho mais tempo. Em alguns minutos vou piscar os olhos e terei partido. Vai ter uma pessoa no meu lugar, o verdadeiro Pedro deste mundo, e ele não vai saber o que está fazendo aqui.
   - Você vai viajar para outra dimensão? - "será um caso de múltiplas personalidades", o Doutor Shapiro pensou, em silêncio.
   Pedro não respondeu a pergunta, apenas entregou um papel dobrado em quatro para o médico - Doutor, existe apenas uma coisa que eu não contei na história. Está escrito aqui. Quando estiver pronto, leia.

       -      -        -

   O Doutor Shapiro queria ter jogado o papel fora, mas deixou-o no bolso, sem olhar para ele. A tevê, na sala, ligada, passava um jogo de futebol, e o médico agora estava no quarto, segurando a folha de papel, ainda sem desdobrar.
    O Doutor não estava preocupado pelo fato das coisas terem acontecido exatamente como o paciente tinha lhe dito. Nem pelo fato de todos os exames de Pedro - que não se lembrava de nada - terem dado absolutamente normais. Nada disto havia perturbado o Doutor Shapiro, e ele já teria esquecido a história na hora que saiu do consultório.
   Só que, na manhã daquele dia, ele havia comentado do novo cabelo ruivo de sua secretária, e ela havia respondido que seu cabelo sempre fora daquela cor. Isto o incomodou durante todo o dia, e ele se pôs a procurar detalhes diferentes, como na história que leu. No início ele disse que era só sua imaginação. Quando chegou em casa, ligou a teve, que passava os mesmos programas que ele esperava ver. Leu um jornal que tinha as mesmas notícias que ele estava acostumado, enquanto seu gato siamês preto sentava em seu colo, como sempre fazia.
   O gato que sentou em seu colo era um persa de pelo claro.
   O Doutor Shapiro foi até seu quarto e trancou a porta. Sentou-se na cama, e tirou do bolso o papel que Pedro havia lhe dado.
   As mãos do Doutor tremiam enquanto ele desdobrava a folha.
   "O nome do cientista que conduziu os experimentos era Doutor Shapiro".



domingo, 14 de outubro de 2012

Ajustando o site

Criada uma imagem para o blog, colocado o fundo em preto. Pequenos ajustes, mas penso que melhoraram muito o visual.
A fazer: página de índice com o resumo das histórias, informação de quais estão completas, etc.

sábado, 13 de outubro de 2012

O Último Rei Orco - Epílogo

(Confira a revisão mais recente de toda a história em http://www.aventuraeficcao.com.br/p/o-ultimo-rei-orco.html)


   Ela os seguiu por dias sem fim, em silêncio, invisível, e esperou a beira do lago.

   Ela não buscava vingança contra eles. Só havia um que ela queria vingar, pelo que Anubis lhe revelou em seus sonhos, e ela esperava o momento certo, mas o rei dos orcos matou Hodekin por ela.

   Quando todos os orcos partiram - e para ela eles sempre seriam orcos, não importa como se chamassem - ela caminhou até o primeiro lago, agora quase seco.

   Em breve deus cairiam, deuses morreriam. Sem a fé para mantê-los existindo, não haveria espaço para eles.

   E para ela?

   A água queimava sua pele, como se fosse fogo, quando ela entrou no lago, e se deitou para que a água a cobrisse. Não era apenas um batismo. Era um renascimento. Seu corpo se incendiando dentro da água, virando cinzas.

   Quando, por fim, ela saiu do lago, já não havia ferimentos. Sua mão era sua, sua lingua, sua voz, mas era um novo corpo que ela usava. E Anubis a esperava.

  - Venha, minha filha. Mas primeiro, diga-me o nome que escolheu para si.

   E ela sorriu para o deus Anubis

  - Bast.

domingo, 7 de outubro de 2012

O Último Rei Orco XXV


Capítulo XXV

Z-US entrou, apressado, nos domínios de J-VA, a fúria possuindo-o.

- Apareça, J-VA, agora. Assim, Z-US ordena.

Uma voz respondeu, vinda de parte alguma - eu não tenho mais corpo para aparecer, Z-US, deus não mais supremo. E eu não obedeço sua vontade.

- Eu digo que o poder de J-VA se encerra agora

- J-VA já não existe mais, Z-US, deus que cairá.

- Eu descobrirei o nome que usa, J-VA. Eu descobrirei e usarei seu nome para destruí-lo.

Uma gargalhada se ouviu - pobre deus menor. Eu não tenho mais nome, Z-US.

- Então sua vitória será curta, e seu poder se esvairá, se suas criaturas não tiverem um nome para louvá-lo acima dos outros deuses.

A gargalhada só aumentou de intensidade - Meus seguidores não precisarão de um nome para me louvar acima de outros deuses, Z-US. Pois eu venci, e quando tudo acabar, não haverá mais razão para eu ter um nome - e após um instante de silêncio, antes da gargalhada recomeçar - pois não haverá nenhum deus além de mim.