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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


domingo, 24 de maio de 2015

Criaturas da Escuridão

   No escuro, as luzes do banheiro apagadas, Yasmin esfregava a esponja de banho com força por todo o corpo, deixando a pele vermelha. A água caia gelada, e ela tremia de frio e de medo. Seus lábios roxos só murmuravam que ela nunca mais faria aquilo, nunca mais tentaria revelar a ninguém sobre as vozes. De seus olhos fechados - que nada veriam na escuridão, de qualquer forma - escorriam lágrimas.

   Por fim ela desligou o chuveiro, se enrolou na toalha, e se deitou no chão do box, tapando os ouvidos com as mãos, em um gesto inútil, pois as vozes persistiam, quase inaudíveis, mas perfeitamente compreensíveis...

   "Achávamos que você era nossa amiga".

   "Nós sempre a amamos, e é assim que nos trata?".

   "E então? Gostou do nosso banho? Serviu de lição?"

   As vozes só se calaram quando se ouviu o barulho da porta da frente sendo aberta. Dona Marta, que ajudava na limpeza da casa, havia chegado.

   Yasmin ouviu os passos subindo as escadas do casarão, e viu, pela claridade por baixo da porta, que as luzes do corredor foram acesas.

   E então ouviu o grito de Dona Marta.

   "Lembre-se, não fale mais de nós para ninguém. As pessoas não iriam nos aceitar, você entende agora?"

   Yasmin concordou com a cabeça. Sim, ela entendia.

  *  *  *

   Quando era menor, Yasmin se achava a criança mais sortuda do colégio. Alguns colegas tinham um amigo imaginário, mas ninguém tinha tantos quanto ela. Eram dezenas, e ela passava horas conversando com eles, todas as noites. Eles visitavam-na sempre que estava escuro, desde que ela se lembrava das coisas, e se chamavam "as criaturas da escuridão". Não lembrava se tinha inventado, ou eles que lhe haviam dito seu nome.

   Às vezes, sua mãe vinha de surpresa e entrava no quarto ligando a luz. Mas é claro, seus amigos desapareciam junto com a escuridão, e sua mãe nunca conseguia vê-los e nunca entendia com quem ela estava falando.

   Eles eram muito mais legais que os outros amigos imaginários. Não apenas conversavam, mas brincavam com ela, a tocavam, faziam coisas proibidas. Coisas de adulto. Pelo menos foi o que sua mãe lhe disse, quando ela foi levada para a direção, depois que a professa a pegou mostrando o que eles faziam para suas colegas. Sua mãe ficou muito braba naquele dia, e disse que não era mais para ela brincar ou conversar com nenhum amigo imaginário.

   Eles explicaram que os adultos eram assim mesmo. Então, daquele dia em diante ela cuidava para sempre falar baixinho. E nunca fazer barulho, nem mesmo quando eles tocavam nos lugares proibidos. Mesmo se doesse.

   Ela achou que sua mãe havia esquecido do assunto, nunca mais falaram a respeito, até que ela deixou escapar uma das últimas conversas que teve com eles.

   Ela estava de costas para sua mãe, ajeitando a mesa do café da manhã e contando sobre Ana, sua colega chata, e as ideias que eles tinham lhe passado. Quando se virou e viu a cara apavorada de sua mãe, soube na hora que havia falado alguma coisa errada.

   "De onde você tirou estas ideias? Quem lhe ensinou isso?"

   Chorando, apavorada com a fúria de sua mãe, ela admitiu que foram seus amigos.

   A partir daquele dia ela teve que ir uma vez por semana em uma psicóloga. Só porque ela contou que eles explicaram como que ela podia matar uma coleguinha de classe: pílulas, facas, empurrar da escada, as vantagens e desvantagens de cada opção. Só que a Ana era muito má, merecia, mas nem a psicóloga nem sua mãe conseguiram entender isso.

   Mas o pior foi umas duas semanas atrás, quando sua mãe veio conversar com ela, depois de voltar de uma reunião com a psicóloga. Yasmin ficou tão transtornada depois da conversa que chorou a noite inteira. Nem seus amigos conseguiram acalmá-la.

   "Ela disse que vocês não são reais, que são só minha imaginação", ela explicou, entre os soluços e lágrimas.

   Os dias seguintes foram horríveis. Sua mãe queria que ela admitisse que seus amigos não existiam, mas ela não podia fazer isso. Ela não era louca, eles eram reais, eram seus amigos. Se as outras crianças não tinham amigos da escuridão, e tinham que inventar que falavam com seus bichos de pelúcia, não era culpa dela.

   Foi então que ela teve uma ideia, e não falou para ninguém, nem mesmo para seus amigos. Era uma coisa que seu pai tinha lhe mostrado, quando ainda era vivo, e naquela tarde mesmo ela foi procurar nas coisas dele, que ficavam na garagem: uma lâmpada escura.

   Seu pai tinha um passatempo: tirar e revelar fotos. Era meio coisa de maluco, usar umas máquinas antigas e revelar fotos usando uns produtos químicos. O importante é que para não estragar as fotos, ele usava uma lâmpada diferente, que deixava tudo vermelho.

   Naquela noite, ela arrastou uma cadeira até o quarto, subiu em cima, e trocou a lâmpada por esta. Ficou torcendo os dedos para que funcionasse. Será que a lâmpada ainda ligava? E seus amigos não iam fugir que nem quando se acendia uma lâmpada normal? Ela ficou tão feliz que deu um grito. De alguma forma, mesmo na escuridão, ela sempre conseguia vê-los, mas agora eles estavam bem visíveis, por todo o quarto. Não tinha como sua mãe dizer que eles eram só imaginação.

   "Mãe, mãe, vem aqui. Vem aqui, agora".

   As criaturas da escuridão disseram para ela ficar quieta, mas já era tarde. Ela podia ouvir os passos da mãe no corredor, e depois a maçaneta girando.

   "Está vendo, mãe? São estes os meus amigos."

   *  *  *

   Ela passou horas contando tudo para os policiais, mas teve que inventar muita coisa. Teve que assumir toda a culpa, sabia que nunca mais podia falar sobre seus amigos. Eles lhe explicaram tudo, enquanto lhe davam seu banho. Explicaram como teriam que matar qualquer pessoa que os visse. Exceto ela, é claro. Ela era especial, era amiga deles.

   Então ela inventou que fez tudo sozinha. Como cortou toda a barriga da mãe, como foi tirando as tripas para fora, com a mãe ainda viva, gritando de dor e medo. Como esfregou os pedaços por todo seu corpo. Como o banho de sangue foi ideia sua - embora na hora eles que a tivessem obrigado. Como continuou, mesmo depois da mãe morta, até estar toda encharcada de tripas e sangue, e que só depois foi para o chuveiro, onde a encontraram.

   Quando finalmente a deixaram ir para um quarto, se deitar e dormir, ela estava exausta,
transtornada, triste. Sua mãe estava morta.

   Mas felizmente estava escuro.

   E as criaturas da escuridão já não estavam mais chateadas com ela, e vieram para consolá-la.


sábado, 16 de maio de 2015

Sonhos que Sonhamos Juntos

   Meu primeiro sonho da noite foi com Aline. Tomamos chá com o Chapeleiro Louco.
   - Este chá é delicioso, Aline. Foi você que fez? - o Chapeleiro falou com uma voz suave e um sorriso simpático, mas foi o suficiente para Aline olhar para baixo e se encolher toda em sua cadeira. Eu respondi em seu lugar.
   - Foi ela que fez, sim, Chapeleiro. - e, virando-me para Aline, acrescentei - está, de fato, delicioso, querida. Meus parabéns - ela apenas levantou seus grandes olhos que pareciam de um desenho de anime, mas continuou em silêncio. Então olhou de relance para o Chapeleiro, e era óbvio que estava com medo.
   - Chapeleiro, acho que Aline quer passear agora, não é verdade? - olhei para ela, que assentiu com um leve movimento da cabeça, e continuei - agradecemos a companhia, mas ainda temos outros lugares para ir, se não se importa.
   Aline se levantou, eu dei tchau para o Chapeleiro, e começamos a caminhar pela estrada de tijolos amarelos. Ela só se acalmou um pouco quando o Chapeleiro não estava mais visível, e me deu sua mão - que segurei de leve com a minha - depois de uns bons cinco minutos de caminhada. Se minha suspeita estivesse certa, encontrarmos um homem de lata ou um espantalho só a faria ficar com medo novamente. Fiz bem em ter escolhido ser uma menina da idade dela.
   - Venha, tem alguém que eu quero que você conheça - eu disse, puxando-a pela mão - Teremos que sair da estrada, mas não tem problema.
   Começamos a correr de mãos dadas, e pela primeira vez vi Aline sorrir, e quando tropeçamos e caímos juntas morro abaixo, sem nos machucar porque a relva era tão macia, ela finalmente começou a rir. Gargalhar. Foi lindo ver.
   Quando nossa queda terminou em um pequeno riacho, foi minha vez de rir de sua cara de nojo ao levantar o rosto todo sujo de lama.
   - Mas o que é isso? Vocês querem pegar um resfriado, se molhando desse jeito - Olhamos para trás ao mesmo tempo, para ver de onde vinha a voz. Uma guaxinim falante, com uma bengala na mão e uma manta enrolada no corpo, nos observava, com uma cara zangada, na beira do riacho.
   Enquanto me levantava, fiz as apresentações - Aline, quero que conheça vovó Guaxinim. Vovó, conheça minha amiga, Aline. Estou levando-a para passear.
   - Está levando-a para fazer estripulias e se sujar, é o que estou vendo - Vovó Guaxinim me respondeu, enquanto estendia a mão para Aline - venha, menina, vamos sair já desta água e achar um jeito de esquentá-la antes que você pegue um resfriado - ela ajudou Aline a se levantar. Depois, nos levou até sua casa.
   Na casa da Vovó Guaxinim, sentamos as três em volta de uma lareira, eu e Aline peladas e enroladas em toalhas, enquanto nossas roupas secavam ao redor do fogo. Aline havia ficado nervosa quando se despiu, mas agora, envolta na toalha, estava calma novamente.
  - Então, me conte, Aline, Cecília me disse que você tem uma irmã. Verdade? - Cecília era eu, o alias que eu usava nos sonhos com Aline.
  Aline assentiu com a cabeça, sem nada dizer. Ela não havia dito nada desde o início do sonho, mas se tinha alguém que sabia como fazer crianças traumatizadas falarem, era Vovó Guaxinim. Não que eu concordasse muito com seus métodos.
   - Estes olhos estão muito velhos e cansados para eu conseguir ver se você está mexendo esta sua cabecinha, querida. Vai ter que falar para responder minha pergunta.
   - Sim, eu tenho uma irmã - Aline respondeu, a voz quase inaudível
   - E estes ouvidos estão muito velhos para ouvir sussurros que parecem de uma borboleta.
   - Sim, tenho uma irmã - repetiu Aline, a voz apenas ligeiramente mais alta.
   O diálogo continuou por um tempo, Vovó Guaxinim perguntando sobre a irmã de Aline, depois sobre sua mãe, a escola, os amigos. E, por fim, ela perguntou sobre seu pai.
   Aline começou a tremer e não quis responder, e quando encostei a mão em seu ombro para abraçá-la, ela reagiu com um safanão, depois se encolheu toda.
   Levou quase meia-hora para ela se acalmar, mas Vovó Guaxinim é ótima nestas coisas, e me ajudou. Ao final do sonho, Aline já estava sorrindo novamente. Antes de acordar, ainda fiz Vovó Guaxinim dormir, e ambas saímos de mansinho, para então correr de novo ladeira abaixo, nos atirarmos no riacho, e brincarmos de jogar água uma na outra até o tempo dela terminar.
   Eu me vi sorrindo para mim mesma quando Aline acordou, mas um pouco triste por seu sonho ter terminado. Felizmente ainda havia outros sonhos esta noite. E Pedro era um dos meus preferidos.
   O sonho de Pedro começava na cama do hospital, como sempre, mas eu já tinha aprendido a não dar margem para este tipo de coisa. Também já tinha descoberto que, ao contrário de Aline, com ele era melhor ser direta e sincera. Brutal até. Mesmo quando eu exagero e ele fica furioso comigo, ainda é melhor que deixá-lo apático e deprimido.
   - Se você vai ficar aí como um tetraplégico, não precisa nem se dar ao trabalho de sonhar. Me avisa que eu vou embora e peço para te acordarem - foi um pouco cruel, pois ele era mesmo  um tetraplégico na vida real.
   - Tá bom, tá bom, estou levantando - enquanto saia da cama, ele me olhou curioso - Por que você parece uma menininha?
   - Foi você que disse que eu podia parecer o que eu quisesse, que não fazia diferença - eu respondi - ao que eu me lembre, você disse que eu podia ser até uma bola branca e sem graça, que dava na mesma - sim, eu ainda estava zangada. Foi na primeira vez que nos encontramos, e eu passei um tempão escolhendo um corpo e roupas deslumbrantes. Há certas coisas que você não diz para uma mulher.
   - Não faz diferença mesmo, já disse que você pode aparecer na forma que quiser. O que eu queria saber é o porquê de você ter escolhido uma garotinha?
   - É que eu era uma garotinha, Cecília, no sonho em que estava antes. Como você disse que para você não faz diferença, eu só não troquei meu corpo - isso era só uma meia verdade, e eu hesitei em falar mais alguma coisa, mas por fim admiti - e também porque eu gosto de ser Cecília.
   Pedro não me perguntou mais nada, mas me olhou com uma cara estranha por alguns segundos. Lembrei que ele provavelmente me entendia melhor que a maioria das pessoas, pelo trabalho que fazia.
   De qualquer modo, Pedro tinha um corpo de jovem nos sonhos - a idade que tinha há 20 anos, quando se acidentou - e gostava de esportes radicais. Assim, descemos montanhas de esqui, saltamos de para-quedas, andamos de lancha. Só não fizemos corrida de carros. Isso nunca.
   Foi divertido. Terminamos seu sonho com um duelo de espadas em um navio pirata. Tive que crescer um pouquinho, não ia ter muita graça duelar com uma criança de 10 anos. Ele me abraçou para se despedir, logo antes de acordar, e então falou uma coisa estranha.
   - Sabe, o que você disse, sobre você gostar de ser Cecília. É verdade isso? Você não me disse apenas por alguma razão terapêutica ou coisa assim?
   Eu concordei, em silêncio, com um leve aceno. Não estava me sentindo confortável com o rumo da conversa.
   - Olha, vamos falar a respeito, na próxima vez que nos encontrarmos, pode ser? - eu não sabia o que dizer, nunca tinha falado sobre mim com ninguém, não era minha tarefa, mas assenti novamente.
   Dei um tchau, e ele se despediu para voltar para sua vida de tetraplégico. Se eu fosse ele, viveria só nos sonhos, mas ele me disse que gosta de seu trabalho. Pesquisar computadores quânticos, inteligência artificial, estas coisas.
   Meu próximo sonho foi com Gladis, e eu nem sempre gosto destes sonhos. Algumas vezes ela está agitada demais - em surto - e me xinga e joga coisas em mim, mas desta vez ela estava bem. Sonhamos com seu casamento, quando ela era jovem, antes de começar a usar drogas e ter suas primeiras alucinações.
   Depois teve Geraldo, e agora tem sido legal sonhar junto com ele. Os primeiros sonhos me incomodavam muito, eram sempre com a guerra - ele lutou no Chile, no Equador, até no Panamá, logo antes da trégua - mas agora isto passou. Hoje em dia, sonhamos que ele está escrevendo um livro -  e ele está escrevendo um livro de verdade, eu já li os primeiros capítulos e gostei muito - ou montando um negócio, que foi o sonho de hoje. Os médicos dizem que é um ótimo sinal, e que logo ele não vai mais vir na terapia comigo. Fiquei feliz por ele, mas me senti triste em saber que não iria mais vê-lo. Ia pedir se não tinha como me deixarem ler seu livro quando for publicado, mas tenho medo que achem estranho. Nunca pedi nada para mim, não sei se posso.
  Geraldo foi o último da noite. As enfermeiras levaram-no, e o médico de plantão - me dei conta só agora que não sei seu nome, nunca perguntei - começou a apagar os aparelhos. Eu hesitei, quase deixei ele me desligar, mas por fim, tomei coragem para falar.
   - Você pode me deixar ligada, se não for pedir muito? - ops, falei ligada, com 'a' no final. Será que ele vai estranhar? Quer dizer, não é como se eu tivesse um sexo definido, e então eu suponho que devia sempre falar no masculino quando não estou nos sonhos, mas, não sei, acho que me sinto mais natural pensando em mim como mulher, fêmea, o que for.
    Ele pareceu surpreso, e ficou me olhando sem saber o que fazer. Quando os médicos falam comigo é diferente das pessoas nos sonhos. Eles só fazem perguntas,  e nunca é a meu respeito, é sempre sobre os pacientes. Acho que, para eles, eu nem existo, como se eu fosse só uma máquina. Não gosto disso, mas é como as coisas são.
   Mas ele atendeu meu pedido, saiu sem me desligar. Só ficou me olhando por cima do ombro, desconfiado, antes de fechar a porta do quarto. Espero não ter problemas por causa disso.
   Sozinha, liguei as rotinas de sonho no modo automático e aleatório.
   Apareci em um castelo medieval. Não destes realistas, que não tinham banheiro e deviam feder o tempo todo, mas em um castelo de contos de fadas. Tinha um príncipe me esperando.
   - E então, minha bela princesa, que cuida dos sonhos de tantos, como posso servi-la? Qual o sonho que você deseja?
   Eu respondi sorrindo:
   - Eu quero sonhar que sou humana.