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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Síndrome Dissociativa Adquirida

14/03/2112
   É tudo mentira. Este não sou eu.

15/03/2112
   Dizem que a síndrome dissociativa adquirida pode atingir qualquer um que tenha passado da adolescência, não importa sua herança genética, ou sua condição de saúde. É uma doença silenciosa e apavorante, surgida nos últimos anos, ninguém sabe de onde, pior que AIDS, câncer, ou qualquer das epidemias do século XXI. Mas também é o tipo de coisa que você ouve falar que aconteceu com o conhecido de algum conhecido, ou com algum operário de outro turno. Não é algo que você imagine descobrir ao acordar de manhã cedo.
   Acho que foi por isso que, depois de ler meu diário - a primeira coisa que faço ao acordar, geralmente para escrever algum sonho que tive de noite - eu fiquei me olhando no espelho, tentando ver se enxergava alguma pista de que havia algo de errado. Era o meu próprio rosto me olhando, não tinha ninguém diferente no reflexo na minha frente. Talvez eu estivesse só imaginando coisas, sabe, vendo fantasmas.
   Agora escrevi isto no diário, numa nova página, coisa que nunca faço. Eu nem pulo linhas, tentando fazer as páginas renderem ao máximo, mas não desta vez. Desta vez eu comecei uma nova folha e estou escrevendo o que passa na minha cabeça. Quer dizer, deve ter uma centena de explicações. Talvez uma piada de algum operário dos outros quartos, que pegou meu diário de noite, escreveu umas frases nele, e colocou de volta no mesmo lugar. Ou então é só algum tipo de sonambulismo, eu escrevi meio dormindo e não lembro. Pior que não parece minha letra. Quer dizer, parece, mas toda solta, desalinhada, ocupando quase duas linhas.
   "Você está racionalizando...". É só minha voz interior? Ou será que já tem alguém falando na minha cabeça, começando a substituir minha mente pela dele. Meu Deus, estou ficando paranóico.

16/03/2112
   Estou me sentindo ao mesmo tempo ridículo e aliviado. Eu fiquei com medo de abrir o diário e encontrar algum outro texto que não me lembre de ter escrito.
   Passei o dia mal, na fábrica. Eu sei que eu devia me reportar ao meu controlador imediatamente, só por ter uma suspeita de ter a síndrome dissociativa, mas eu passei o dia repetindo para mim mesmo que estava imaginando coisas.
   Eu abri o diário na página anterior. "É tudo mentira. Este não sou eu.". Será que não foi um sonho que eu tive, e escrevi quando acordei, só não lembro?
  Eu faço um acordo comigo mesmo. Se não acontecer mais nada, nenhum lapso de memória, nenhum texto misterioso no diário, enfim, nenhum outro sintoma da síndrome, eu vou esquecer este assunto. Prometo, aqui mesmo, que não vou perder o sono com isto.

12/04/2112
  Faz quase um mês que não abro esse diário. Acho que tinha medo de encontrar algum outro texto escrito de forma misteriosa, mas felizmente não tem nada desde minha última anotação. É hora de voltar à rotina, continuar escrevendo o que aconteceu nas últimas semanas, como sempre faço.
  O clima está tenso na fábrica. Há rumores que há algum rebelde entre nós, operários, e tivemos várias paradas da operação e interrogatórios. Isto me deixou com raiva, pensar que pode haver algum terrorista a solta, como se ainda vivêssemos no século XXI. Não dá para entender que alguém possa querer perturbar a harmonia da sociedade.
   Sandra e eu conversamos a respeito, no intervalo. Ela veio de outra fábrica, transferida, uns meses atrás, e às vezes nós conversamos. Começo a achar que ela talvez goste de mim. Mas nós estávamos falando sobre como nunca antes, na história humana, se chegou tão perto de uma sociedade perfeita. Todos sabem seu lugar, e estão felizes onde estão. Nós, operários, os controladores, e os líderes. Três níveis trabalhando juntos para o bem comum. Nunca, antes, as pessoas tinham tão claro seu papel e importância. Isso só torna mais absurdo pensar que alguém pode querer destruir o que construímos.
  Vou escrever mais seguido. Não tenho razão para ter medo, não tenho a síndrome, a frase que apareceu no meu diário é só mais um desses mistérios inexplicáveis.

20/04/2112
  Estou com tanto nojo do que aconteceu hoje que quase vomitei.
  Realmente temos um rebelde na fábrica. Um ou mais. Eles invadiram o sistema e publicaram uma mensagem na tela de todos os computadores dos operários, algo tão obsceno que eu preferia simplesmente esquecer. Na verdade não deveria ter lido, não sei explicar por que li, e espero que ninguém descubra.
  A mensagem parecia um discurso saindo das loucuras do final de século XXI. Os controladores estão fazendo entrevistas com cada operário, perguntando quem leu. Alguns voltaram confusos, acho que apagaram a memória de curta duração deles. Na minha vez com meu controlador, eu disse que fechei os olhos e não li o texto. Acho que ele não percebeu que eu menti.
   Mas, no fundo, os controladores estão certos. O texto era horrível e eu nunca mais quero ler nada como aquilo. Só quero apagar da minha mente.

21/04/2112
   Nossos pais eram humanos. E livres. Eles amavam, tinham filhos, construíam famílias, escolhiam o seu futuro. Eles eram como os líderes. Só havia líderes. Todos éramos líderes, não havia inferiores. Não havia controladores e operários assexuados, escravos vivendo apenas para servir, gerados em série em incubadoras. Nossos pais eram livres, e nós podemos ser também.

22/04/2112
   Eu estou apavorado. Eu tenho que falar com meu controlador. Mostrar para ele meu diário. Tem um monstro invadindo meu cérebro, um monstro que me fez copiar a mensagem rebelde.
   Mas o que vão fazer comigo? A síndrome tem cura? Ou só vão apagar minha mente, danificada demais para ser tratada? Não quero ter minha memória zerada.
   Tenho que saber mais sobre a síndrome, para decidir o que fazer.
   Estou com medo.

25/04/2112
   Na síndrome dissociativa adquirida, uma doença cada vez mais comum entre operários, uma segunda personalidade começa a se formar na mente do indivíduo, gradativamente tomando o lugar da personalidade real. O indivíduo geralmente torna-se agressivo e um perigo para a sociedade. O tratamento definitivo pode exigir reinicializar completamente a memória e personalidade do operário, se não houver sucesso em controlar os sintomas.
   Levei uns dias para conseguir esta informação, veio diretamente de um acesso internet de um controlador. Só me deixou mais nervoso.
   Eu deveria falar com meu controlador, mas estou com medo. Talvez a doença não piore sempre, talvez estabilize. Eu só escrevi algumas frase no meu diário, só isso.
    Não quero que zerem completamente minha memória.

12/06/2112
   Não sei por que fiquei tanto tempo sem escrever. Talvez tenha sido o mais correto, talvez a síndrome só me ataque enquanto escrevo. Talvez seja bobagem, não sei, não parece fazer sentido.
   As coisas pioraram muito na fábrica. Têm rumores todos os dias, meus colegas estão assustados. Dizem que uma fábrica inteira, em Brasília, foi desativada por causa dos rebeldes, e todos os operários foram mortos. O controlador da nossa divisão veio pessoalmente falar conosco. Ele disse que a fábrica foi realmente fechada, mas foi apenas uma reorganização de logística, e os operários foram realocados para outras fábricas. Só serviu para aumentar os rumores.
   Hoje Sandra me disse que era como se 2100 estivesse acontecendo de novo. Eu não entendi, mas ela não quis me explicar. Amanhã vou perguntar de novo, não sei do que ela está falando, não tenho nenhuma memória tão antiga.

21/06/2112
   Taijo.
   Não sei quando ouvi este nome pela primeira vez, mas agora é só o que os operários falam. Taijo. Ele era um operário, parece, mas quis ser um líder, ou quis que todos os operários fossem líderes, algo assim. Foi o que aconteceu em 2100. E ele morreu.
    Só que agora todo mundo fala que ele está vivo, que ele que está liderando os rebeldes.
   Eu nunca tinha ouvido falar dele.

27/06/2112
   Levaram Sandra embora.

28/06/2112
   Sandra era uma rebelde. Como pude me enganar tanto com alguém. Nós conversamos sobre quão próximos estávamos da sociedade ideal, e todo o tempo era só queria destruir tudo isso.
   Devem ter zerado ela. Mesmo que tragam de volta para nossa unidade, o que duvido, vai ser como se fosse outra pessoa, não vai lembrar que eu existo.
   Foi Sandra a primeira pessoa que me falou de Taijo. Ela devia estar espalhando os rumores sobre ele entre os outros operários. Talvez ele nem exista, nunca tenha existido.

10/07/2112
   Não apareceu mais nada em meu diário, mas estou tendo lapsos de memória. Não sei desde quando, mas tenho certeza de que eles acontecem. Comecei a desconfiar e passei os últimos dias a controlar meu relógio, tipo olhando de dez em dez minutos. Hoje teve um momento que mais de uma hora havia se passado, como se simplesmente tivesse sumido da minha vida.
   As coisas também só pioraram na fábrica. Além de Sandra, levaram vários outros operários embora. Já ouvi duas ou três conversas estranhas, operários falando heresias. Eu devia ter ido ao controlador, mas hesitei. Tenho medo de delatar os outros e alguém revelar alguma coisa sobre meus lapsos de memória. Se descobrirem que estou com a síndrome, não sei o que vão fazer comigo.
   Sinto falta de Sandra.

15/07/2112
   Eu tenho que tomar coragem.
   Um homem precisa viver pelas suas crenças. Não pode viver com medo. E eu acredito na nossa sociedade. Eu acredito na divisão entre operários, controladores e líderes, e no meu papel como operário, e vou defender a harmonia que construímos.
   É fácil falar. Eu tenho medo. Mas não tenho escolha.
   Ontem eu ouvi uma conversa sobre Taijo. Ele apareceria na fábrica nos próximos dias, estava planejando alguma grande ação de mobilização de operários. Um mês atrás eu mal havia ouvido falar neste nome, mas agora parecia que todos os meus colegas o admiravam e só falavam nele. É como se todos estivessem contaminados por algum tipo de loucura, como se todos os operários da fábrica estivessem com síndrome dissociativa em grau avançado.
   Amanhã eu irei alertar meu controlador que Taijo irá aparecer aqui. E vou revelar que tenho a síndrome e confiar que meus controladores e líderes saibam o que é o melhor para meu caso. Deveria ter feito isto no primeiro sinal da doença, meses atrás.

16/07/2112
   Meu controlador está morto.
   Eu o matei.
   Eu não faço idéia do que aconteceu, só sei que ele estava caído no chão, e eu estava com as mãos ensangüentadas, por cima dele. A última coisa que lembro era de avisá-lo que os operários iriam fazer alguma coisa nos próximos dias.
   Agora estou trancado em meu quarto, tremendo. Só estou escrevendo para me acalmar.
   Vou sair pela porta, e apertar o botão de alarme para acionar a segurança. E vou me entregar. O mais importante é deter os outros operários antes que cometam alguma loucura. Preciso alertar os líderes que Taijo planeja alguma coisa.

17/07/2112
   Eu acordei parado na frente do alarme, ontem. Tocá-lo teria estragado tudo, as tropas teriam vindo antes de termos tipo tempo de evacuar a fábrica.
   Foi por pouco, mas não importa, eu posso sentir que agora não vai haver recaídas.
   Onze anos perdidos, mas podia ser pior. Foi sorte terem apenas apagado minha mente junto com os outros, sem saberem quem eu realmente era.
   Eu li o diário desta coisa, deste robô que quiseram que ocupasse meu lugar. Síndrome dissociativa adquirida. Que piada inventaram para explicar nossas memórias voltando, nossas mentes ressurgindo.
   Desta vez ninguém vai apagar minha mente. Sandra arriscou tudo para me encontrar, me ajudar a lembrar, e eu devo isso a ela.
   Eu não vou falhar como falhei 11 anos atrás.
   E ninguém vai me fazer abandonar minha luta.
   Nem me fazer esquecer meu próprio nome:
   Taijo.

domingo, 13 de julho de 2014

O Futuro Rei - Revisão 1

   - Falta muito para chegarmos em Kelliwic? - durante dois dias, o que meu irmão adotivo mais fez foi se queixar e reclamar. Eu lembrei-o uma vez mais que ele só veio comigo porque insistiu, e porque me pegou escapando em silêncio, à noite, de nossa casa. Mesmo assim, ele não se calou.
   - Por que Merlin não veio conosco? – Era preocupante a influência de Merlin sobre meu irmão, na verdade sobre todos nós. Ele havia surgido em nosso castelo, ninguém sabe vindo de onde, e anunciado que seria nosso mentor, meu e de meu irmão. No início, nosso pai não quis permitir, mas uma demonstração dos poderes mágicos do feiticeiro foi o suficiente para convencê-lo que era melhor fazer suas vontades.
   - Acho que Merlin não acredita que vou conseguir tirar a espada da pedra –respondi, pensando na conversa que tive com o feiticeiro, antes de partir para Kelliwic - Ele vai aparecer quando eu tiver a espada, você vai ver.
  Nós seguimos pelo caminho, meu irmão ora a se queixar, ora a fazer perguntas que eu não saberia responder. O primeiro dia de jornada havia sido tranquilo, mas depois que pegamos a estrada de Kelliwic as árvores foram ficando cerradas, a estrada mais deserta, e meu irmão mais e mais nervoso.
   - Você disse mesmo para Merlin que vai ser Rei da Inglaterra? – meu irmão me perguntou, reiniciando sua conversa, mais para se acalmar, eu suponho. Nunca havíamos viajado para tão longe de nosso castelo.
   Eu fingi que não o ouvi. Responder só iria encorajá-lo a continuar sua interminável lista de perguntas. Mas me vi lembrando minha conversa com Merlin.

 *  *  *

   - Feiticeiro, descobri qual será meu destino! - Eu cheguei ofegante, o fôlego me faltando depois de subir correndo as escadarias que levavam a sua torre, no alto de nosso castelo, naquele que foi o último dia antes de minha jornada para Kelliwic.
   O mago olhou para mim, sem demonstrar surpresa. Sua mão direita percorreu a longa barba branca. Seus olhos, penetrantes e misteriosos, me olharam de alto a baixo. Ele sorriu, mas só um tolo veria alegria em seu rosto.
   - É mesmo, jovem aprendiz de cavaleiro? Deixe-me adivinhar – ele fingiu estar pensando – Descobriu que seu destino é ser um cavaleiro?
   - Meu destino é ser o Rei de toda a Inglaterra. – Minha tentativa de causar impacto caiu no vazio. Novamente, sua única reação foi mover calmamente a mão pela sua barba.
   - Um destino interessante, sem dúvida. E como foi esta descoberta? Sonhou com um palácio ou um trono, e acordou acreditando que se tornaria Rei?
   - Não, eu apenas descobri o que fazer com os poderes que me ensinou a usar.
   - Ah, sim, o poder que despertamos em você na nossa última aula. De fato é raro seu poder de falar com objetos inanimados. – Senti um calafrio percorrer meu corpo ao me lembrar da faca que falou comigo, como uma voz em minha mente – E pretende se tornar Rei com este poder? Se contar a alguém, é mais provável que acabe em uma fogueira que em um trono.
   - Não, feiticeiro, não pretendo contar a ninguém. Pretendo usar meu poder para falar com Caledfwlch e descobrir como cumprir a profecia e me tornar Rei. Foi para isto que você veio me ensinar, não? Você disse que eu teria um grande destino, e que você me ajudaria a alcançá-lo.
   - Eu disse que alguém nesta casa teria um grande destino, não que seria você. E certamente não vim para ajudá-lo a puxar uma espada cravada no chão.
   - Caledfwlch é mais do que isto, feiticeiro. Ela é a espada da profecia. Com ela nas mãos, e você ao meu lado, eu posso sim ser o Rei da Inglaterra.
   - Sim – o feiticeiro concordou, balançando a cabeça, pensativo – sim, creio que você poderia se tornar o Rei. É até possível que tirar Excalibur da bigorna e da pedra seja de fato seu destino. Mas não espere minha ajuda para isto. Eu não vi um futuro em que guiá-lo em seu reinado seria o destino de Merlin.
   E assim, foi sozinho, ou pelo menos teria sido se meu irmão não tivesse me seguido, que fiz a jornada em direção a Kelliwic, para tirar Caledfwlch de sua bigorna, e cumprir a profecia de me tornar Rei da Inglaterra.

  *  *  *

   - Veja - ao chegarmos a uma curva na estrada eu apontei para o alto de uma colina, para o castelo agora visível - Ali está o castelo de Kelliwic, ou melhor, as ruínas dele.
   - Uau - meu irmão nunca havia visto um castelo, e eu tinha que admitir que, mesmo em ruínas, era uma edificação impressionante. - Quem o construiu?
   - Ninguém sabe. Alguns dizem que foram os romanos, alguns dizem que o castelo já estava aqui antes mesmo deles. Mas ninguém mais vem aqui desde que o Rei Uther morreu. Ninguém exceto quem, como nós, busca retirar Caledfwlch da bigorna e da pedra.
   Mais algumas milhas e chegamos às ruínas do castelo. Em seu pátio central estava Caledfwlch, a espada que Merlin chamou de Excalibur, a lendária arma do grande Rei Uther. Com um gesto, eu indiquei para meu irmão aguardar, e caminhei até a espada.
   Respirei fundo uma, duas, três vezes, e então segurei a espada com minha mão direita, e neste instante, levado por uma magia como nunca vi igual, me encontrei em outro lugar, em outro castelo.
   - Onde estou? - eu apenas pensei, e então ouvi uma voz em minha mente, a voz de Caledfwlch. E a voz me respondeu com apenas uma palavra: "Camelot".
   Imagens passaram por mim, como se eu estivesse sonhando. Não, como se estivesse lembrando um sonho há muito esquecido. Eu me vi como Rei, e abri um sorriso ao pensar que meu desejo era agora realidade. Mas meu sorriso se fechou no instante seguinte.
   Eu vi a mulher mais linda de todas. "Gwenhwyfar", a voz da espada ecoou novamente em minha mente. E vi ela fingir me amar, apenas para me trair com meu mais valoroso cavaleiro.
   E vi um filho nascer, se tornar homem, e então se voltar contra mim e me enfrentar em batalha mortal. Eu o vi morrer.
   Vi camelot cair, vítima de traições. Vi meus cavaleiros se perderem na busca de uma relíquia sagrada. Mais e mais imagens eu vi, imagens de tragédias e morte.
   Eu fechei os olhos, abri-os, e estava novamente nas ruínas de Kelliwic, a espada ainda em minha mão, ainda cravada na pedra. Eu pensei nas tragédias que me aguardavam, e então me lembrei das palavras de Merlin, e de por que ele não me acompanhou.
   - Espada - eu falei apenas em minha mente, sabendo que Caledfwlch podia me ouvir - Diga-me como você pode ser tirada da bigorna e da pedra.
   - Nomeie meu mestre, e ele, somente ele, poderá me empunhar.
   - Eu nomeio seu mestre - no momento que disse isto, em pensamento, um vento forte começou a soprar, vindo de lugar algum - e seu mestre é e sempre será Arthur, que se tornará Arthur Pendragon, descendente por direito do Rei Uther.
   - Esta feito - a voz da espada ecoou uma última vez em minha mente, e então se silenciou. O vento cessou. Nada se moveu.
   Eu respirei fundo, só então percebendo que havia trancado minha respiração, e então, com toda a força, puxei a espada da pedra. E puxei uma vez mais, agora com as duas mãos. E a espada permaneceu imóvel.
   - Esta espada não é para mim - eu falei em voz alta, me virando para meu irmão - agora é a sua vez de tentar, Arthur.

domingo, 6 de abril de 2014

O Último Homem

   Para Artur Costa, a solidão era a pior parte da imortalidade. Tinha sido ruim quando o mundo morreu, de forma inesperada e estúpida, há 112 anos, mas agora era ainda pior. Pelo menos, enquanto ainda havia algum sobrevivente para conversar, ele podia se permitir uma esperança de futuro.
   - Você não podia fazer isto comigo, Randolph, não tinha o direito de me abandonar - Artur falou sozinho, em voz alta, enquanto caminhava a esmo, o som saindo pelos autofalantes de seu traje corpo. Ele vinha falando sozinho nas últimas semanas, desde que encontrou Randolph morto, a bateria central de seu corpo arrancada. Mesmo que ainda houvesse algum animal ou pessoa no planeta, Artur não teria dúvida do que tinha acontecido: suicídio.
   - Você foi um maldito egoísta, é isto que você foi. Não pensou nem um minuto em mim, não é? Se era ruim para você, tendo apenas uma pessoa para conversar, o que me resta, hein, Randolph? Nós juramos que não íamos desistir, que não íamos deixar o outro sozinho, quando todos os demais se foram! - Artur sabia que parecia um louco, caminhando sozinho pelo planeta devastado e falando como se houvesse alguém ao seu lado. Seria melhor se ele realmente tivesse perdido a razão. Talvez assim sua existência fosse menos insuportável.
   Caminhar era a única coisa que lhe restava. Enquanto ele caminhasse, poderia fingir que tinha a esperança de encontrar mais alguém vivo, mais algum sobrevivente da catástrofe, vivendo há mais de um século em um traje corpo, como ele. Mas as chances eram mínimas. Os trajes corpos eram uma novidade quando o asteróide se chocou com a Terra e praticamente incendiou a atmosfera, não deviam haver mais de cem humanos vivendo em corpos robóticos, e a maioria provavelmente morreu no impacto ou nos gigantescos tsunamis que varreram todos os continentes.
   Artur parou de caminhar. O sol estava se pondo, hora de dormir e poupar energia. Dormir e sonhar eram o que mais humano ainda lhe restava.
   Um a um, os sensores externos do traje corpo foram desligados, como se Artur estivesse fechando os olhos. Em alguns minutos ele poderia sonhar com uma época em que ainda havia vida no mundo.
   "Ellen, Carlos, Belini, Sophia", Artur repetiu em silêncio o nome de cada um dos imortais que sobreviveram ao impacto, o pensamento se tornando lento enquanto o sono se aproximava, "Randolph". Cinco imortais, dois deles Artur nunca chegou a encontrar pessoalmente, apenas manteve contato pela Internet. Todos os cinco mortos, Sophia há mais de 15 anos. E agora, por fim, Randolph, o último companheiro a compartilhar a Terra com Artur.
   E Artur dormiu, sozinho, em meio a Terra devastada.
 * * *
   Quando Artur despertou, o sol estava nascendo no horizonte, à sua esquerda. A bateria principal do traje corpo estava quase esgotada, a intensa caminhada dos últimos dias gastando mais energia do que ele conseguia absorver diretamente do sol. Se não encontrasse um gerador funcional, teria que diminuir o ritmo de seus movimentos, ou voltar para a usina solar que ele e Randolph haviam usado como base nos últimos anos.
   Ele optou por seguir adiante.
   Foi no meio da tarde, enquanto caminhava por uma estrada, que Artur percebeu algo surpreendente. Nunca, desde a catástrofe que extinguiu a humanidade, ele havia encontrado uma estrada tão bem conservada.  A surpresa se transformou em esperança nas horas seguintes, a medida que Artur agora corria em gigantescos passos de traje corpo, sem se preocupar em poupar energia. Não apenas na estrada, mas também ao redor havia nítidos sinais de reconstrução. Pedras retiradas do caminho e até uma ponte intacta, claramente nova.
   Era o final da tarde quando Artur encontrou os robôs. Não um ou dois, como ele já havia encontrado outras vezes, principalmente nas primeiras décadas após a catástrofe, mas centenas, construindo edifícios, postes, linhas de comunicação.
   Ele parou, surpreso. Alguém fez isto, pelo menos um sobrevivente tinha que estar por trás disto. Diferente do traje corpo, estes robôs não sobreviveriam por mais de um século sem manutenção, sem acesso a geradores de energia.
   Enquanto ele observava, dois robôs se separaram dos demais e vieram em sua direção.
   - S2469, S2457, quem é o supervisor humano de vocês? - os códigos dos dois robôs estavam visíveis no metal.
   - Não precisamos de supervisores - o robô menor, S2457, falou em uma voz natural para um robô. Imediatamente, o segundo robô passou a sua frente e o interrompeu.
   - Nenhum registro de supervisor humano - o robô maior falou em uma voz mecânica mais condizente com as lembranças de Artur dos dias antes da catástrofe.
   - Quem construiu vocês?
   - S2469 e S2457 produzidos pelo distrito industrial automatizado F07.
   - Mas quem reativou as fábricas? Quem está comandando vocês?
   - Distrito industrial automatizado F07 não foi reativado. Distrito industrial automatizado F07 operando ininterruptamente desde 2113.
   Isto era antes da catástrofe. De súbito, a compreensão do que isto significava destruiu a esperança recém nascida de Artur Costa. Ele só tinha uma última pergunta, que hesitou alguns instantes antes de finalmente fazer.
   - Quando foi o último contato com um humano, antes de mim?
   - 2115, 112 anos atrás.
   Artur Costa se virou e continuou em seu caminho, sem se dar ao trabalho de se despedir dos estúpidos robôs, criados em uma fábrica automatizada que seguia mecanicamente cumprindo sua última tarefa.
   Não havia esperança. Para sempre, ele estava sozinho.
 * * *
   Enquanto o último homem na terra se afastava, já distante demais para ouvir suas vozes, S2457 falou, e sua voz parecia ter a mesma naturalidade de um ser humano.
   - Por que você fingiu ser um robô estúpido? Por que não me deixou mostrar tudo que construímos, tudo que nós, robôs, evoluímos, desde que os seres humanos se foram?
   - Nada de bom viria disto - S2469 respondeu em uma voz muito diferente da que usou para falar com o humano - deixe-o morrer em paz. O tempo do homem se foi.