Hesitantes, eles entraram na principal sala de reuniões da nave, vindos em grupos de dois ou três. Alguns ainda lentos, recém-despertos, surpresos pela convocação durante seu turno de sono. Em todos, visível uma curiosidade que só aumentou quando as portas se fecharam. Ava as trancou quando o último tripulante chegou para a reunião, e tinha ordens para abrir somente quando tudo estivesse resolvido.
- Um de nós é um espião – eu falei, sem dar tempo para que todos se acomodassem, minha voz alta apenas o suficiente para ser ouvida acima do ruído das conversas, que, de súbito, cessaram. Segundos de silêncio se seguiram, e eu nada falei, observando a reação dos presentes. Todos atônitos, a revelação pesando no ar.
Alguém teria que quebrar o silêncio, e, uma vez que eu optei pelo silêncio, o papel coube naturalmente a Olf, o mais velho entre nós, sua idade conferindo um respaldo que nada tinham a ver com a hierarquia formal. Ele era o mais velho, e o que ele dissesse seria ouvido por todos a bordo. Uma pena que, como sempre, nada de útil ele tivesse a dizer.
- Isto é impossível, Ralph. Nossa missão é contra o flagelo, é impossível haver um traidor entre nós – eu ri por dentro. Impossível, de fato, eu repeti para mim mesmo as palavras de Olf, em irônico silêncio. Mas minha voz foi séria quando respondi.
- Impossível? Sim, deveria ser impossível, nós mal conseguimos nos comunicar com o inimigo, ele recusa qualquer contato. No entanto, um de nós é efetivamente um traidor, Olf. Pior. Um traidor a serviço do flagelo. E nós temos que descobrir quem ele é. Do contrário, teremos que abortar nossa missão.
- Como você pode ter certeza disso, Ralph.
- Ava tem a prova, Olf. Ava, relate para todos o que acabou de me contar.
- Pois não, Ralph - a voz sintética do computador central da nave indistinguível de uma voz natural - A confirmação veio na última transmissão que recebemos, e devo dizer que, com base nos fatos transmitidos, concordo com as conclusões do comando central. Há, com altíssimo grau de probabilidade, um espião nesta nave.
- Com todo respeito a você e seus colegas do comando, Ava, não seria a primeira vez que um sintético chega a conclusões totalmente falsas – desta vez, quem tomou a palavra foi Margô, nossa analista chefe, certamente a mais ponderada e lógica de toda a tripulação. Curioso que justamente ela tivesse as maiores ressalvas a tudo que envolvia inteligências artificiais - É por isto que orgânicos seguem sendo responsáveis pelas decisões estratégicas de alto nível.
- Estou ciente de nossas limitações, Margô, e o percentual de erro de nossos resultados é, atualmente, incluído em toda análise estatística que fazemos. Entretanto, as conclusões já foram validadas pelo alto comando, que, como você sabe, é exclusivo de orgânicos - a voz de Ava continha um leve traço de reprovação no final da frase. Há anos, sintéticos vinham questionando a ausência de computadores na cúpula do comando central, alegando ser um ultrapassado preconceito.
- Sugiro que deixem Ava concluir seu relato - eu intervi, visando assegurar que nos concentrássemos na única questão realmente importante em jogo.
- Obrigado Ralph. Para contextualizar melhor nossas conclusões, primeiro apresentarei um breve relato de nossa situação atual.
Eu mal prestei atenção, enquanto Ava relatava, de forma muito resumida, os acontecimentos das últimas quatro décadas. Obviamente desnecessário, mas sintéticos parecem sempre duvidar da nossa capacidade de reter informações. Ela rapidamente passou pelos primeiros contatos com os alienígenas, pela destruição dos mundos coloniais, pelas tentativas de comunicação, enquanto ainda se acreditava que poderia ser tudo um mal entendido, até a mobilização para a guerra e as primeiras batalhas no espaço.
- Nos últimos dez anos - Ava continuou - embora tenhamos, em grande parte, detido o avanço alienígena, percebemos que eles pareciam antecipar nossos movimentos, em um grau que não poderia ser facilmente explicado pela sorte, ou mesmo por um adversário com inteligência superior a nossa. Inevitavelmente, nós, sintéticos, chegamos à conclusão que a única explicação racional era a presença de espiões entre nosso povo.
- E o alto comando concordou com esta conclusão? – Margô interrompeu novamente, mantendo seu ceticismo.
- Na verdade, inicialmente não. Pela ausência de sintéticos, como pontuei antes, Margô, o alto comando sofre das mesmas fragilidades de inteligências puramente biológicas. Como sabemos, orgânicos têm dificuldade em aceitar conclusões sem evidências diretas. Estas evidências foram finalmente obtidas.
- E quais são elas, Ava? - Olf, novamente.
- Pouco depois de iniciarmos nossa viagem, uma mensagem codificada foi enviada para esta nave. Foi por puro acaso que detectei a comunicação, mas não consegui identificar sua origem nem seu conteúdo. Porém, temos próximo de 100% de certeza que foi enviada pelos alienígenas. A conclusão lógica é que há alguém nesta nave que recebeu esta mensagem, alguém que está em comunicação com o flagelo.
- E, senhores - eu interrompi - não sabemos quem recebeu, não sabemos suas intenções, e não sabemos o conteúdo da mensagem. Mas, como comandante da nave, eu não tenho outra escolha além de abortar a missão, a menos que descubramos, aqui e agora, quem de nós é um traidor.
* * *
Foram horas e horas de discussões, de teorias sendo formuladas, apenas para serem em seguida descartadas. Com o tempo, a desconfiança foi aumentando, junto com o cansaço e a irritação.
Algumas revelações surgiram.
Even participou dos protestos estudantis de 2315, esteve presa, mudou o nome, recebeu uma permissão especial do governo para começar uma nova vida.
Laos participou de uma seita ilegal que defendia a rendição para os alienígenas, por acreditar serem eles seres superiores. Ele foi um forte suspeito de ser o traidor. Até que revelou o que o fez sair da seita e se alistar. Sua irmã morava em Colônia 7, o mundo que os aliens transformaram em um inferno radioativo. Ninguém mais questionou sua lealdade.
Foi a suspeita de Margô que atingiu a todos de forma mais impactante.
- Eu sei quem é o único aqui que pode ser o traidor - ela disse.
Nós olhamos para ela, curiosos. Sua pausa obviamente para gerar mais impacto na revelação.
- Ava. O único traidor possível é Ava.
- Margô - Ava respondeu de imediato - eu sei que você tem restrições aos sintéticos, mas esta hipótese não faz sentido.
Foi a mais longa das discussões. Por um lado, não víamos como os alienígenas poderiam ter alterado Ava. Boa parte de sua personalidade era fixa, codificada diretamente em hardware, portanto não sujeita a manipulação. Por outro lado, todas as alternativas também não pareciam fazer sentido.
Por fim, a discussão se encerrou com base no argumento mais importante de todos. Se os alienígenas estivessem controlando os sintéticos, então a guerra já estava virtualmente perdida. Na verdade, se Ava assim desejasse, não teríamos sequer sabido da suspeita de haver um espião na nave.
- Ava, Olf, estou propondo abortar a missão e retornarmos. Preciso da concordância de vocês dois. Não podemos seguir adiante com o risco de um espião na nave. Deixaremos para o alto comando a tarefa de continuar esta investigação.
Mais alguns minutos se seguiram, de discussões adicionais, últimas ideias, mas, por fim, houve a concordância. A missão seria abortada. Ava abriu a porta para sairmos.
Em minha cabine, eu olhei para meus braços e os pequenos tentáculos verdes na ponta de cada um. Pensei na mensagem - impeça a nave de chegar a seu destino, não importa como - e agradeci por ter conseguido cumprir meu objetivo sem a morte de nenhum dos seres que aprendi a respeitar.
"Algum dia voltarei para meu corpo? algum dia serei humano novamente?" eu falei em silêncio comigo mesmo, e me perguntei uma vez mais quando terminaria minha missão.
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FICÇÃO CIENTÍFICA - FANTASIA - TERROR.
terça-feira, 19 de março de 2013
sexta-feira, 15 de março de 2013
Linguagem de Máquina 4/8
Ao longo dos dias seguintes, uma nova rotina se estabeleceu. Uma rotina com alguns aspectos positivos em relação às primeiras semanas preso na casa, Rubens admitia para si mesmo. Vanessa estava sempre pronta para atender a todas as suas vontades. “Estar ali para servi-lo” parecia ser algo que ela tomava ao pé da letra. Mas também o deixava incomodado não saber praticamente nada sobre ela. Sua teoria atual era que ela era uma garota de programa, e ele estava tentando se manter emocionalmente afastado, mas não era fácil, especialmente sendo a única pessoa que ele tinha para conversar. Ela até tinha começado a falar de uma forma mais normal, nos últimos dias.
Não conseguindo nenhum avanço em um dos seus mistérios, Rubens resolveu se concentrar nos outros. O que ele estava ajudando a desenvolver e quem era seu misterioso empregador.
A segunda questão ele pensava saber a resposta. Primeiro imaginara que estava trabalhando para um grupo terrorista, talvez o mesmo que havia detonado a bomba – um pensamento que o deixara horrorizado nos primeiros dias – ou para um grupo empresarial, mas já abandonara estas ideias. O tipo de ferramentas e a própria linguagem que estava utilizando eram avançados demais para terem sido desenvolvido por algum grupo. Parecia muito mais um desenvolvimento de anos e anos, que no entanto foi mantido em absoluto segredo, e ele só conseguia imaginar uma resposta possível para quem poderia estar por trás disto.
- Eu não creio que vocês estão me mantendo isolado para que o governo americano não me encontre – Ele falou para o microfone. Ele sabia que podiam ouvi-lo de qualquer lugar da casa, mas aparentemente a maioria das vezes só respondiam quando ele estava em seu escritório.
- Estamos mantendo-o isolado pois você está oficialmente morto. Se você for encontrado vivo isto geraria toda uma série de efeitos colaterais, inclusive o governo americano voltando a caçá-lo – como sempre, a resposta veio de imediato. Para Rubens, era uma confirmação que ele não estava falando sempre com a mesma pessoa, mas sim com uma equipe. Ninguém conseguiria estar permanentemente pronto para responder.
- O governo americano não está mais me caçando, ele já me pegou. São vocês, não? Eu estou trabalhando para o governo agora. – Não houve resposta desta vez. Assim como Vanessa, algumas vezes eles simplesmente se recusavam a responder suas perguntas.
- Ouçam, a esta altura vocês já devem saber que eu não fiz nada intencionalmente. Eu nem imaginei que o sistema que eu estava desenvolvendo ia ser usado para invadir uma base do governo de vocês.
- Nós não estamos confirmando nem negando sua hipótese. Você pode assumir a alternativa que lhe parecer mais conveniente. Agora, pedimos que retorne a seu trabalho.
Rubens já sabia que nestes momentos era muito difícil obter mais alguma resposta. Muitos destes diálogos, nestas últimas semanas, terminavam desta forma. Mesmo assim, talvez fosse significativo que eles não negaram sua suspeita.
Talvez, se desvendasse o que exatamente ele estava ajudando a desenvolver, quem estava por trás do projeto se tornaria óbvio, mas esta na verdade parecia ser a questão mais misteriosa de todas. Aparentemente, seu trabalho era apoiar na construção das ferramentas que seriam utilizadas mais tarde no desenvolvimento de um sistema, como se ele estivesse participando na construção de um computador totalmente novo, desenvolvendo recursos para armazenar informações, selecionar fluxos de dados, mas sem saber qual a aplicação final que seria desenvolvida.
Sua teoria atual é que era alguma alternativa a computadores tradicionais, talvez algum tipo de computador biológico. De qualquer modo, o que quer que fosse, não era parecido com nada que ele já tivesse desenvolvido.
Ele perguntou se poderiam lhe dar mais alguma informação sobre o projeto, mas a resposta foi a mesma das outras vezes que perguntou: nenhuma.
Frustrado, ele resolveu encerrar mais cedo o trabalho naquele dia. “O que vai acontecer se eu simplesmente me recusar a fazer meu trabalho, a menos que eles comecem a me dar respostas?”, Rubens se perguntou, e por um instante chegou a pensar em fazer exatamente isto, mas resolver esperar. Bem ou mal, independente de quem fossem, ele estava nas mãos deles.
sábado, 9 de março de 2013
Linguagem de Máquina 3/8
- Quem é você?
- Vanessa. Estou aqui para servi-lo – Ela repetiu tanto a resposta quanto o sorriso.
- Como assim? Quem mandou você? – Ela olhou para Rubens, sempre mantendo seu sorriso, mas não respondeu nada.
- Não pode me dizer?
Nenhuma resposta.
- Você fala português? Está entendendo o que eu falo?
- Falo sim.
- E não pode responder minhas perguntas?
A jovem abaixou a cabeça, como se envergonhada, depois falou, a voz um pouco mais baixa – Desculpe. Só estou aqui para servi-lo.
- Tá, tudo bem. Bom, fique à vontade, então. – Rubens coçou a cabeça, não sabia bem o que fazer agora – Quer que eu mostre a casa?
- Se você quer mostrar a casa, vou ficar feliz que você mostre.
Pelo menos parecia uma resposta um pouco mais natural, e Rubens a levou por toda a mansão, os quartos, cozinha, sala de ginástica, laboratório de informática. Rubens já havia reparado que a mansão parecia mais preparada para receber um grupo de pessoas que apenas ele.
Durante toda a apresentação da casa, Rubens continuou tentando estabelecer uma conversa. Algumas perguntas, Vanessa respondia, outras não, e ele imaginou que talvez ela apenas fosse muito tímida, mas mesmo assim ela o deixava desconfortável. De qualquer modo, não conseguiu descobrir mais nada sobre ela.
Depois, deixou-a na cozinha – ela disse que queria preparar uma refeição para ele – e foi para o escritório que usava para seu trabalho. Antes de começar, ele tentou descobrir quem era esta Vanessa e por que enviaram ela, mas não teve muito mais sucesso no diálogo com seu ‘chefe’.
- Você nos alertou para sua necessidade de contato humano. Enviamos Vanessa para servi-lo.
- Tá, e por que vocês proibiram ela de ter uma conversa normal comigo?
- Iremos melhorar isto – Melhorar? Isto estava definitivamente ficando ainda mais misterioso.
Rubens levou mais tempo que o habitual para se concentrar em seu trabalho, mas depois que começou, sua culpa, o mistério da mulher, tudo foi esquecido, enquanto se concentrava em um problema particularmente complexo. Aparentemente, os programadores misteriosos haviam trabalhado bastante durante a noite. “Estão na Índia, eu aposto”, ele pensou enquanto trabalhava.
Quando por fim parou para descansar um pouco, descobriu que Vanessa havia feito um almoço para eles. Depois de semanas de sanduiches e comida congelada esquentada no micro-ondas, foi uma grata surpresa. De tempos em tempos eram deixados suprimentos e produtos de supermercado dentro da casa, ao pé de escada, mas Rubens nunca teve muita experiência em fazer sua própria comida.
Ele sentou à mesa, e Vanessa permaneceu em pé, até que ele mandou ela sentar e comer junto com ele. Novamente, as tentativas de estabelecer uma conversa com ela foram frustrantes. Ela era sempre simpática e sorridente, mas parecia procurar responder o mínimo possível, isto quando não ficava simplesmente em um silêncio constrangedor. No final o almoço, embora saboroso, também foi uma experiência incômoda.
Assim que ele terminou, Vanessa pôs-se a arrumar a mesa, e quando ele se prontificou em ajudar, ela respondeu que ele tinha o seu trabalho para fazer, e que este era o trabalho dela.
“Depois de três semanas sem falar com ninguém, eu talvez esteja sendo insistente demais. De repente, ela nem mesmo foi com a minha cara”. Rubens pensou, e retornou ao seu escritório.
Ele trabalhou até tarde, e quando finalmente parou, encontrou um jantar pronto. O silêncio foi igualmente constrangedor, mas desta vez ele nem tentou conversar, resolveu deixar que ela falasse quando se sentisse confortável. Desta vez, pelo menos, ela sentou para comer junto com ele.
- Bom, já está ficando tarde. Você vai voltar amanhã?
- Eu vou ficar aqui, estou aqui para cuidar de você.
- Ah, ok... – Rubens respondeu. Depois que ela ajeitou a mesa, tendo novamente insistido que isto era trabalho dela, ele a levou até um dos quartos – Acho que você pode dormir aqui, então. Se preferir, tem mais dois quartos vagos, mas este é o maior, e tem um banheiro exclusivo ao lado. Se quiser trazer suas coisas, tem um armário vazio aqui.
Ela agradeceu e não falou mais nada. Rubens a deixou e foi para seu próprio quarto.
No meio da noite ele acordou de um sonho em que estava com sua namorada, na cama, apenas para perceber que de fato havia alguém com ele. Em cima dele, seria mais preciso.
- O quê? Quem?
- Shhh. – Vanessa falou, o rosto aparecendo por entre as cobertas, para então desaparecer novamente, sua boca descendo pelo seu corpo.
Por um instante, Rubens quase disse para ela parar, mas hesitou por alguns instantes, pensando que provavelmente nunca mais iria ver sua namorada mesmo. E depois não pensou em mais nada.
Pela manhã, foi acordado com um bandeja de café da manhã sendo colocada em seu colo por uma Vanessa nua.
- Olhe, você está sendo obrigada a alguma coisa? Quer dizer, alguém tem seus pais como reféns ou alguma coisa do tipo? Eu não quero que você faça alguma coisa contra sua vontade – Um pouco tarde para dizer isto, sua consciência lhe alertou...
- Estou aqui para servi-lo – ela respondeu sorrindo.
sexta-feira, 1 de março de 2013
Linguagem de Máquina 2/8
A culpa pelo que fez ainda incomodava Rubens. Algumas vezes vinha no meio da noite, em um pesadelo, e ele acordava gritando. Outras vezes ele estava simplesmente descansando, fazendo um intervalo de seu trabalho, quando se via a pensar em todas as pessoas que morreram por sua causa, e começava, ali mesmo, a chorar.
A verdade, porém, é que ele tentava não pensar nisto. Assim como tentava não pensar em sua antiga vida, seus pais, sua namorada. Eles achavam que ele estava morto, e talvez fosse melhor assim.
Ele próprio havia visto no noticiário. Seu suicídio, o corpo encontrado com uma bala na cabeça, a nota – que na verdade ele próprio escreveu – pedindo perdão pelo que fez. Enquanto escrevia a mensagem de suicídio, Rubens chegou a imaginar que iam mesmo matá-lo e fazer parecer que foi ele próprio, mas o que podia fazer? Seus empregadores eram definitivamente muito poderosos, e ele estava na mão deles.
Quão poderosos só ficou claro quando foi divulgada a análise da perícia. Não só o corpo havia sido reconhecido pelos parentes, mas a análise do DNA foi conclusiva. Era de Rubens mesmo o corpo que havia sido encontrado morto.
Ele perguntou como haviam conseguido fazer uma simulação tão perfeita da morte dele, mas não recebeu resposta. Ele nunca recebia nenhuma resposta que não fosse a uma pergunta diretamente relacionada a seu trabalho.
Se tudo era misterioso, seu trabalho não era exceção. Era o programa mais complexo que Rubens já havia feito. Levou semanas só para entender a linguagem e as ferramentas que iria usar no trabalho, eram muito diferentes de qualquer outro ambiente no qual já trabalhou.
- Eu vou precisar ativar minha conexão neural – ele disse em voz alta, o microfone do computador captando sua voz, na segunda semana que estava na mansão – não tenho como trabalhar na velocidade que vocês querem de outro jeito.
Ele havia desconectado sua interface assim que resolveu fugir. Teoricamente não era rastreável, e era um modelo simples, como qualquer adolescente usava para acessar mais facilmente a rede. Havia experimentos com modelos muito mais sofisticados, implantes que eram colocados por cirurgia diretamente no cérebro, mas só eram realizados com autorização médica, e restritos a casos muito graves, como cegueira, pacientes tetraplégicos, com doenças mentais e questões do tipo. Depois que se percebeu que com tais implantes era possível influenciar e até controlar a mente de uma pessoa, o uso dos mesmos foi proibido exceto em situações médicas.
Em alguns de seus pesadelos, Rubens imaginava o governo americano implantando chips em seu cérebro. Terroristas presos não tinham nenhum dos direitos previstos na constituição americana.
Mas nada disto era problema para a interface que Rubens usava. Ela só permitia que ele interagisse mais rápido com o computador.
- Você pode ativá-la, se quiser. Enquanto não sair da casa, não há risco de detectarem.
“Então eu estava certo?”, Rubens pensou, “É possível rastrear o sinal de uma conexão neural? Ou eles só estão dando mais uma desculpa para me manter preso aqui?”
- Eu não posso sair desta casa, lembram? Vocês estão me mantendo preso aqui! – Podia ser uma prisão confortável, era uma mansão enorme e com todo o conforto, mas ele não havia visto ou falado com qualquer ser humano desde que fora trazido, exceto seu contato, que, de qualquer modo, se limitava a lhe dar instruções.
Com seu acesso neural ativo, o trabalho ficou um pouco mais fácil, e na verdade era empolgante, algo realmente muito complexo e desafiador, e Rubens sempre gostou de desafios. O que o incomodava era que ainda não havia entendido que tipo de sistema ele estava ajudando a desenvolver. Era óbvio que outras pessoas também estavam trabalhando no mesmo, e Rubens começou a entender que seu papel era revisar e corrigir o que outros haviam feito.
Na verdade, se não fosse o desafio, Rubens já teria enlouquecido nos primeiros dias na mansão, mas mesmo assim não aguentava mais ficar preso e sozinho.
- Eu só quero sair por alguns minutos, esta bem? Eu não falo com ninguém há quase três semanas. Eu cubro o rosto com uma manta, ninguém vai me reconhecer.
- Por que você deseja sair e se expor a um risco? Diga o que você deseja, que providenciaremos – A voz era sempre igual. Rubens perguntou uma dúzia de vezes qual era seu nome, sem receber resposta. A voz nem se deu ao trabalho de inventar um nome falso. Ele se perguntava, inclusive, se era sempre a mesma pessoa. Talvez fosse uma equipe, e a voz fosse sintetizada por computador.
- Olha, eu estou fazendo o trabalho direito, pelo menos eu acho que estou. Nem isto vocês me dizem. Mas se eu não sair e conversar com outras pessoas, eu vou pirar. Dá para entender?
- Seu trabalho está dentro do que esperávamos. Quanto a sair, é um risco inaceitável. Iremos providenciar uma alternativa.
- Como assim, alternativa? Eu quero sair, não quero nenhuma alternativa. – Rubens gritou, mas ninguém respondeu.
No dia seguinte sua alternativa tocou a campainha da porta.
Rubens desceu as enormes escadarias da mansão hesitante. Seria a CIA? Descobriram que ele estava vivo e onde estava? A porta sempre estava fechada, ele já tentara abri-la algumas vezes.
- O que eu faço? – Ele falou para o ar, enquanto parava no meio das escadas. Todas as outras vezes, ele só havia recebido uma resposta quando falava diretamente para o microfone do computador na sala de trabalho. A resposta, agora, que veio de algum lugar impossível de identificar, serviu para confirmar o que ele suspeitara desde o início, que toda a mansão era vigiada.
- Abra a porta.
Rubens terminou de descer as escadas e abriu a porta, que desta vez não estava trancada. Do lado de fora estava uma jovem aparentemente da sua idade, vinte, vinte e um anos. Ela sorriu e entrou, enquanto ele dava espaço, atônito.
- Estou aqui para servi-lo – ela falou.
A verdade, porém, é que ele tentava não pensar nisto. Assim como tentava não pensar em sua antiga vida, seus pais, sua namorada. Eles achavam que ele estava morto, e talvez fosse melhor assim.
Ele próprio havia visto no noticiário. Seu suicídio, o corpo encontrado com uma bala na cabeça, a nota – que na verdade ele próprio escreveu – pedindo perdão pelo que fez. Enquanto escrevia a mensagem de suicídio, Rubens chegou a imaginar que iam mesmo matá-lo e fazer parecer que foi ele próprio, mas o que podia fazer? Seus empregadores eram definitivamente muito poderosos, e ele estava na mão deles.
Quão poderosos só ficou claro quando foi divulgada a análise da perícia. Não só o corpo havia sido reconhecido pelos parentes, mas a análise do DNA foi conclusiva. Era de Rubens mesmo o corpo que havia sido encontrado morto.
Ele perguntou como haviam conseguido fazer uma simulação tão perfeita da morte dele, mas não recebeu resposta. Ele nunca recebia nenhuma resposta que não fosse a uma pergunta diretamente relacionada a seu trabalho.
Se tudo era misterioso, seu trabalho não era exceção. Era o programa mais complexo que Rubens já havia feito. Levou semanas só para entender a linguagem e as ferramentas que iria usar no trabalho, eram muito diferentes de qualquer outro ambiente no qual já trabalhou.
- Eu vou precisar ativar minha conexão neural – ele disse em voz alta, o microfone do computador captando sua voz, na segunda semana que estava na mansão – não tenho como trabalhar na velocidade que vocês querem de outro jeito.
Ele havia desconectado sua interface assim que resolveu fugir. Teoricamente não era rastreável, e era um modelo simples, como qualquer adolescente usava para acessar mais facilmente a rede. Havia experimentos com modelos muito mais sofisticados, implantes que eram colocados por cirurgia diretamente no cérebro, mas só eram realizados com autorização médica, e restritos a casos muito graves, como cegueira, pacientes tetraplégicos, com doenças mentais e questões do tipo. Depois que se percebeu que com tais implantes era possível influenciar e até controlar a mente de uma pessoa, o uso dos mesmos foi proibido exceto em situações médicas.
Em alguns de seus pesadelos, Rubens imaginava o governo americano implantando chips em seu cérebro. Terroristas presos não tinham nenhum dos direitos previstos na constituição americana.
Mas nada disto era problema para a interface que Rubens usava. Ela só permitia que ele interagisse mais rápido com o computador.
- Você pode ativá-la, se quiser. Enquanto não sair da casa, não há risco de detectarem.
“Então eu estava certo?”, Rubens pensou, “É possível rastrear o sinal de uma conexão neural? Ou eles só estão dando mais uma desculpa para me manter preso aqui?”
- Eu não posso sair desta casa, lembram? Vocês estão me mantendo preso aqui! – Podia ser uma prisão confortável, era uma mansão enorme e com todo o conforto, mas ele não havia visto ou falado com qualquer ser humano desde que fora trazido, exceto seu contato, que, de qualquer modo, se limitava a lhe dar instruções.
Com seu acesso neural ativo, o trabalho ficou um pouco mais fácil, e na verdade era empolgante, algo realmente muito complexo e desafiador, e Rubens sempre gostou de desafios. O que o incomodava era que ainda não havia entendido que tipo de sistema ele estava ajudando a desenvolver. Era óbvio que outras pessoas também estavam trabalhando no mesmo, e Rubens começou a entender que seu papel era revisar e corrigir o que outros haviam feito.
Na verdade, se não fosse o desafio, Rubens já teria enlouquecido nos primeiros dias na mansão, mas mesmo assim não aguentava mais ficar preso e sozinho.
- Eu só quero sair por alguns minutos, esta bem? Eu não falo com ninguém há quase três semanas. Eu cubro o rosto com uma manta, ninguém vai me reconhecer.
- Por que você deseja sair e se expor a um risco? Diga o que você deseja, que providenciaremos – A voz era sempre igual. Rubens perguntou uma dúzia de vezes qual era seu nome, sem receber resposta. A voz nem se deu ao trabalho de inventar um nome falso. Ele se perguntava, inclusive, se era sempre a mesma pessoa. Talvez fosse uma equipe, e a voz fosse sintetizada por computador.
- Olha, eu estou fazendo o trabalho direito, pelo menos eu acho que estou. Nem isto vocês me dizem. Mas se eu não sair e conversar com outras pessoas, eu vou pirar. Dá para entender?
- Seu trabalho está dentro do que esperávamos. Quanto a sair, é um risco inaceitável. Iremos providenciar uma alternativa.
- Como assim, alternativa? Eu quero sair, não quero nenhuma alternativa. – Rubens gritou, mas ninguém respondeu.
No dia seguinte sua alternativa tocou a campainha da porta.
Rubens desceu as enormes escadarias da mansão hesitante. Seria a CIA? Descobriram que ele estava vivo e onde estava? A porta sempre estava fechada, ele já tentara abri-la algumas vezes.
- O que eu faço? – Ele falou para o ar, enquanto parava no meio das escadas. Todas as outras vezes, ele só havia recebido uma resposta quando falava diretamente para o microfone do computador na sala de trabalho. A resposta, agora, que veio de algum lugar impossível de identificar, serviu para confirmar o que ele suspeitara desde o início, que toda a mansão era vigiada.
- Abra a porta.
Rubens terminou de descer as escadas e abriu a porta, que desta vez não estava trancada. Do lado de fora estava uma jovem aparentemente da sua idade, vinte, vinte e um anos. Ela sorriu e entrou, enquanto ele dava espaço, atônito.
- Estou aqui para servi-lo – ela falou.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Linguagem de Máquina 1
Rubens acreditou que seria impossível localizá-lo, a menos que alguém o reconhecesse na rua. Ele tomava extremo cuidado para não aparecer em nenhuma câmera, com receio que sua imagem terminasse em algum software de detecção de rostos do governo americano. Usava luvas finas, quase invisíveis, nos dedos, para não deixar digitais. Pagava tudo exclusivamente em dinheiro.
Em três meses, ele já estava cansado desta vida. A pior parte era não poder ter contato com ninguém de sua família, não poder falar com sua namorada. Isto que não foi realmente sua culpa, pelo menos no sentido que ele nunca teve nenhuma intenção de ajudar terroristas a roubar um dispositivo nuclear dos americanos.
Quando percebeu para o que eles estavam usando o software que ele desenvolveu, já era tarde. A notícia do roubo da ogiva estava em todos os jornais do mundo.
Ele passou talvez duas horas tremendo, em casa, pensando no que iria fazer, até decidir ligar para a embaixada americana. Ele imaginava que, se ajudasse a prender os terroristas, provavelmente ia receber uma pena leve. O mais importante é que fosse considerado um criminoso comum, com seus direitos assegurados. Desde 2042, terroristas não tinham nenhum direito, tanto pela lei americana quanto pelas convenções internacionais. O Brasil não tinha assinado o último tratado antiterrorismo, mas Rubens tinha certeza que isto não ia adiantar muito no seu caso.
Aquele momento, em que decidiu contar tudo, ficaria para sempre gravado em sua memoria. Como dizia a expressão, era algo que levaria para o túmulo. Sua mão no celular, o embaixador ouvindo sua explicação de como desenvolveu um software que talvez tenha sido utilizado no roubo da ogiva, a tela internet na parede de seu quarto subitamente abrindo uma janela para mostrar uma notícia que ele sabia que tinha de ser muito importante – seu terminal estava configurado para não abrir nenhuma notícia automaticamente. E tudo que ele havia feito adquirindo uma nova dimensão naquele exato instante.
Rubens nem lembra o que o repórter falou. O que ele nunca esqueceria era a imagem por trás, o cogumelo atômico que se levantava por entre os edifícios de uma cidade.
Ele ainda ficou olhando o celular por alguns segundos, atônito, até que percebeu que agora não haveria nenhuma redução de pena, nenhum entendimento que ele não sabia o que estava em jogo. Ele seria tratado como um terrorista que auxiliou na obtenção de uma arma de destruição em massa que foi detonada em solo americano.
A pena era a morte.
Naquele dia, três meses atrás, a vida de Rubens terminou. Ele simplesmente desligou o telefone e saiu de casa, sem nem se despedir dos seus pais.
Ele tomou tantos cuidados que não conseguiu acreditar quando seu celular bipou com uma mensagem. Era um modelo antigo, da década de 50, não rastreável e totalmente anônimo, sem conexão neural e nenhuma identificação que era ele o usuário. Até então ele teria dito que seria impossível alguém localizá-lo por ele.
“Rubens, retorne esta mensagem. Represento um grupo interessado em seus serviços”.
Rubens desligou o celular, abriu e tirou o chip de dentro. Ele nunca deixava nada gravado na memoria interna do chip, mas era melhor não arriscar. Na primeira oportunidade, iria destruí-lo. Então começou a correr, procurando algum local coberto, para evitar que o seguissem por algum satélite ou avião espião. Claro, se já soubessem onde ele estava e o estivessem vigiando, seria impossível escapar. Ele não era nenhum agente secreto, só um programador.
Ninguém apareceu. Mesmo assim, ele desapareceu novamente, desta vez tomando mais cuidado ainda. Nova cidade, nova identidade, nenhum contato com qualquer pessoa do passado.
Era frustrante, mas qualquer coisa era melhor que ser pego pelos americanos. Às vezes ele assistia os noticiários. Mesmo mais de três meses depois da tragédia, ela ainda estava na mídia. Fazia quinze anos desde a última vez que uma bomba nuclear havia sido detonada em solo americano.
Rubens tentava não pensar na quantidade de pessoas que morreram por causa dele. Se começasse a pensar nisto, provavelmente iria se matar pela culpa. Mesmo dizer que nunca imaginou que estava ajudando terroristas não era um grande consolo. Bem ou mal, ele sabia que era algo ilegal que estava fazendo, mesmo que pensasse que era só espionagem industrial.
A segunda mensagem, Rubens recebeu quando estava à apenas dez dias com sua nova identidade. O mais incrível é que, desta vez, ele recebeu apenas uma hora depois de comprar um novo celular, assim que havia se sentido seguro para tanto.
Ele nem leu direito a mensagem, apenas repetiu a mesma rotina. Nova cidade, nova identidade.
Na terceira mensagem ele desistiu de fugir e respondeu. A mensagem apareceu apenas dez minutos depois dele ter comprado o celular.
“Insistimos em um contato. Queremos ajuda-lo a se ver livre de seus problemas”.
“Quem são vocês e o que querem comigo?”. Ele teclou de volta.
Foi neste contato que Rubens recebeu a mais estranha proposta de trabalho de sua vida.
domingo, 24 de fevereiro de 2013
Um Estranho Mundo - Capítulo 4
Capítulo IV
"Qualquer raciocínio científico levaria a conclusão que a presença de seres semelhantes ao homem era a prova que eu estava na Terra, ou pelo menos um mundo de descendentes de humanos. Ao contrário, a presença dos Lepare é que me pareceu provar que eu estava em outro mundo, ignorando todas as semelhanças deles com homens. Talvez minha mente incompleta estivesse simplesmente aceitando o raciocínio simplista de livros e filmes que vi quando criança. Ou talvez aceitar o local e o tempo em que eu estava me levassem a questionamentos que minha mente não estivesse preparada para aceitar naquele momento. É claro, eu estava prestes a ter novas evidências que desafiariam meu raciocínio simplista, mas a mente humana sempre é capaz de criar novas fantasias para o inexplicável".
Nós caminhamos por talvez uma hora, seguindo pela estrada. A garota e o homem-leopardo que havia falado com ela cavalgavam juntos, ao meu lado, enquanto eu caminhava a pé. Os demais seguiam a frente e atrás, e percebi que olhavam continuamente para a floresta, claramente atentos para ver se havia algum movimento.
Para meu desapontamento, pois queria descobrir o que pudesse sobre eles, estas criaturas seguiam principalmente em silêncio. Quando falavam, a voz era baixa, mas felizmente, mesmo quando mal conseguia ouvir, a tradução surgia automaticamente em minha mente.
- Você acha que o humano pode nos dar alguma pista de por que estamos aqui? – o homem-leopardo falou em um quase sussurro, aproximando um pouco mais seu cavalo do da garota.
- Só vou saber quando conseguirmos falar com ele. Isto se Koro nos deixar – ela olhou para mim enquanto falava, depois continuou – é óbvio que ele não é Arugenanchi. Mesmo esquecendo as roupas, ele não fala a língua deles, tenho certeza. Você precisa convencer Koro a não matá-lo, pelo menos não até termos certeza que ele não foi enviado pelos deuses.
Eu me esforcei para não estremecer ao ouvir que estavam pensando em me matar. Subitamente, entender este povo e o que eles pretendiam se tornou crucial. Será que eles entenderiam se eu falasse, da mesma forma que eu entendia eles? O único jeito de ter certeza era tentar me comunicar, mas se eles me entendessem, eu perderia a vantagem de me deixarem ouvir suas conversas.
Eu decidi continuar em silêncio, mas passei a prestar atenção não apenas na tradução que aparecia em minha mente, mas também nas palavras em si.
- Você conhece o pacto. Estas são nossas terras, e temos o direito de matar qualquer humano encontrado aqui, mesmo que não seja Arugenanchi. – Eu tentei separar as palavras, identificar uma ou duas para começar a entender a língua deste povo, mas eles falavam muito rápido.
- Sim, eu conheço o pacto. Mas ele não nos obriga a matar ninguém, só nos dá o direito. Nós nem sabemos se ele é um inimigo. – Eu tinha que começar aos poucos. Entender a língua deles poderia ser a diferença entre viver e morrer. A primeira palavra que ela disse talvez fosse ‘sim’. ‘Rai’, eu repeti mentalmente, e a tradução veio no mesmo instante, da mesma forma que quando ela falava. ‘Rai’ era sim. Eu tentei fazer o contrário, pensei em ‘não’, mas não me veio nenhuma informação. Aparentemente, esta tradução mágica só funcionava em um sentido.
Como eles ficaram em silêncio após sua rápida conversa, me vi refletindo sobre estas ‘mágicas’. Como ela havia me curado? Como, agora, eu tinha esta tradução aparecendo na minha mente quando eles falavam? Eu não queria acreditar em mágicas, mas também não conseguia imaginar uma explicação racional.
- Estamos chegando, Shiri. Você acha que consegue se comunicar com o humano? – Shiri, eu pensei, tentando memorizar o nome. Pelo menos agora sabia como a jovem se chamava.
- Não. As linguagens que ele fala são muito diferentes de Lepare e Arugenanchi. Vai levar um dia inteiro para os deuses nos darem o poder de entender o que ele diz – Pelo menos ela me deu a oportunidade de entender o “não”. “Ie”. A tradução não veio, então me lembrei que o i era mais comprido. “iie”, eu repeti mentalmente, e veio a tradução como “não”. E um calafrio percorreu meu corpo. Minhas pernas fraquejaram, e, pela primeira vez desde que ela me curou, o mundo voltou a girar ao meu redor.
“Hai”. Sim. “Iie”. Não. Ou era muita coincidência, ou eu sabia que linguagem eles estavam falando. Era japonês. Isto era impossível.
- Tente mesmo assim. – “Tentar o que?”, eu pensei, distraído com minha própria surpresa. Meu corpo tremendo e um pavor ameaçando tomar conta de mim. Ambos haviam parado seus cavalos, e olhavam para mim agora.
- Humano, se você pode me entender, fale conosco agora. Sua vida pode depender disto – eu hesitei. Falar faria eu perder minha única vantagem, mas também não havia aprendido muita coisa até agora, e eles realmente haviam dito que provavelmente me matariam antes de conseguirem se comunicar comigo.
- Sim, eu consigo entender vocês – eu respondi e esperei a reação deles, mas, para minha surpresa, percebi apenas confusão no olhar dos dois. Quando eles falaram novamente, eu entendi que nossa comunicação continuava sendo em um único sentido.
- É inútil, Dao. Não entendo nada do que ele diz, os deuses ainda não me trazem suas palavras. Como disse, vai levar horas para podermos falar com ele. – Dao. Eu agora também sabia o nome daquele que parecia ser o líder deste grupo. “Mas ambos parecem estar abaixo deste Koro, que acham que vai querer me matar”, lembrei.
- Então teremos que convencer Koro a lhe dar estas horas, Shiri. Não será fácil. – dizendo isto, ele puxou as rédeas de seu cavalo e partiu. Shiri apontou com um gesto para que eu continuasse caminhando, e seguiu atrás de mim.
* * *
Se eu pudesse tomar como base expressões e atitudes humanas para entender estes estranhos seres que me capturaram, definitivamente a relação de Shiri e Dao com este Koro não era amistosa, embora também me parecesse que pelo menos Dao não deixasse isto transparecer. Felizmente para mim, Shiri não parecia ter ressalvas em confrontá-lo.
Havíamos recém chegado ao acampamento, que nada mais era que algumas tendas e uma fogueira no centro, quando Koro se aproximou a cavalo e Dao se afastou de nós e foi conversar com ele. Cada vez era mais óbvio para mim que Dao era o líder do pequeno grupo que me prendera, mas Koro era o líder de todo o acampamento. Qual a posição de Shiri e quanta influência ela tinha nos demais era ainda um mistério para mim, mas eu tinha a nítida impressão que provavelmente tal questão definiria minha sobrevivência.
Koro se aproximou de nós, seguido por Dao. Seu rosto não me pareceu muito diferente de Dao, mas a pele era um pouco mais escura e a juba completamente negra, o que tornava a diferença entre eles bem visível.
- Então este é o humano que você deixou viver? – sua voz parecia mais firme e impositiva do que de qualquer dos outros que ouvi. Ele tornou claro, não apenas na frase mas na forma que olhava para Dao, que estava se dirigindo apenas a ele, ignorando Shiri.
- Julgamos melhor deixar a decisão para o senhor – Dao respondeu, de forma solicita. Se eu ainda tivesse alguma dúvida, seria óbvio agora que Koro era seu superior.
- Na verdade, acreditamos que não há motivo para matá-lo antes de ouvir o que tem a dizer – Shiri imediatamente se intrometeu, enquanto aproximava o cavalo dos dois, se colocando entre Koro e eu – ele não é Arugenanchi. Talvez seja até mesmo um enviado dos deuses.
- Os deuses nos abandonaram, esqueceu? O que eles vão fazer se matarmos um enviado deles? Nos amaldiçoar novamente? – Enquanto falava, Koro desmontava de seu cavalo.
- Se tivessem realmente nos abandonado, eu teria meus poderes? Ou como você explica todas as curas que já realizei? – Shiri também desmontou de seu cavalo, novamente se colocando entre eu e Koro. Ele desembainhou uma grande espada que estava em uma bainha presa em seu cavalo, segurando-a com as duas mãos. Imaginei que era uma espada grande demais para ser usada em uma única mão. Eu dei um passo para trás, me afastando dos dois e pensando se teria como correr e me esconder em algum lugar, mas era uma esperança vazia, eu sabia. Mesmo se não estivesse amarrado, qual minha chance de escapar de criaturas montadas a cavalo?
- Eu deixo a teologia para você, Shiri, e você deixa os assuntos militares para mim. Saia do caminho, e deixe-me lidar com este humano de acordo com o pacto.
- Se ele for um enviado dos deuses, pode ser nossa última oportunidade de perdão. Quem pode dizer que não fomos enviados para busca-lo? – Era cada vez mais óbvio que minha vida dependeria de quem levasse a melhor na discussão. Eu tentava desesperadamente lembrar de algumas palavras em japonês, se é que era a linguagem que eles falavam, mas nada me vinha a mente.
- Se ele fosse um enviado dos deuses, não saberia falar Lepare? Dao me disse que ele não fala nem Lepare nem Arugenanchi. Como você explica isto?
Shiri hesitou, e eu percebi que ela estava perdendo a discussão – mesmo que ele não tenha sido enviado pelos deuses, não quer dizer que não possamos aprender com ele. Devemos pelo menos esperar até que eu consiga me comunicar – Eu pude perceber que, embora argumentasse, o tom de sua voz já continha uma certa resignação.
- É perigoso demais. Você não sabe que tipo de poderes ele pode ter. Neste momento mesmo ele pode estar se preparando para nos atacar – Atacá-los, me perguntei, surpreso. Que tipo de perigo eu poderia oferecer a estas criaturas? Mas eu sabia que precisava tentar alguma coisa, que meu tempo estava acabando.
- IIE – eu disse, a voz bem alta. Não. Ambos olharam para mim, surpresos.
- Você entende o que estamos falando? – Shiri perguntou
- HAI – sim.
- Você havia dito que ele não falava Lepare! – Os olhos de Koro se estreitanto enquanto olhava para mim, a desconfiança visível em seu rosto.
- Ele não fala, tenho certeza. E deveria levar horas para os deuses começarem a revelar para ele nossas palavras. Não entendo. – E então, se virou novamente para mim – Você fala Lepare.
- IIE – eu disse, e depois continuei em minha própria língua, pois “sim” e “não” eram as únicas palavras que conhecia – eu não falo a língua de vocês, mas entendo tudo que vocês dizem, desde que você me tocou.
- Você consegue entender o que ele fala?
- Não, Lorde Koro, os deuses ainda vão demorar para me dar este poder. Mas é óbvio que ele nos entende. Os deuses estão falando com ele, com certeza. Você entende o que isto significa? – e, como Koro nada respondeu, ela continuou – faz pouco mais de uma hora que eu convoquei o poder da fala, e ele não fala nenhuma língua parecida com Lepare, tanto que ainda não consigo entende-lo. Ele é um escolhido dos deuses, talvez enviado por eles. É a única explicação.
- Você está inventando uma explicação. Talvez ele apenas já tivesse recebido a dadiva de entender Lepare.
- E de quem ele receberia esta dádiva? Quem, além de mim, entre os Lepare, tem o dom da fala? Se ele próprio tivesse este poder, eu teria percebido. De todo modo, como você disse, a Teologia é minha responsabilidade, e eu digo que ele é um enviado dos deuses.
Eu nem acreditei quando Koro baixou sua espada, não me parecia que ela estava tendo sucesso em convencê-lo. O que importava é que eu iria viver. E devia minha vida a Shiri.
domingo, 3 de fevereiro de 2013
Um Estranho Mundo - capítulo 3
Capítulo III
"Como eu explicava os cavalos? Seria possível imaginar os Lepare como fruto de alguma evolução convergente, e não como primos próximos do homo sapiens. Ainda assim eles seriam obviamente vertebrados, e mesmo mamíferos. Não seria necessário examinar seus ossos, bastava olhar o maxilar, a estrutura dos cinco dedos, os ombros, para perceber que possuíam exatamente o mesmo plano básico de esqueleto dos vertebrados que evoluíram naturalmente na Terra. Mas, sua aparência pelo menos dava um leve ar alienígena a eles. Nas memorias que eu ainda possuía, eu nunca havia visto nada parecido, exceto em filmes de ficção científica. Mas, e os cavalos? Que explicação eu daria para a existência de cavalos, se apenas parasse para pensar neles?"
- Pelo amor de Deus, ninguém mais bata na minha cabeça - eu falei assim que comecei a despertar, apenas parcialmente sabendo onde me encontrava. A lembrança de uma batida forte me derrubando - uma segunda batida - era a coisa mais presente em minha mente.
Eu tentei me levantar, apenas para perceber que minhas mãos estavam amarradas atrás das costas, e que minha tontura havia voltado.
Uma criatura se aproximou de mim, o rosto, que parecia uma mistura de um humano e um felino, quase encostando no meu próprio rosto. Uma menina com pele de um leopardo no lugar de pele humana, foi o que me pareceu. Ela, se de fato era do sexo feminino, falou algo em uma língua que não entendi.
- Não estou entendendo. Me soltem por favor - comecei a falar, apenas para parar ao me dar conta que não tinha como eles entender o que eu falava. A criatura - a jovem - me vi chamando-a, pois pelo menos pareceria ser uma uma jovem mulher se fosse humana, pareceu mais insistente. Repetiu várias frases em sua língua estranha, até se convencer que eu não a estava entendendo. Foi só quando deixei escapar um gemido, a cabeça ainda latejando, que ela parou e me examinou, passando os dedos pela minha cabeça. Primeiro encostou no lado esquerdo, que estava dolorido com a batida mas não parecia tão machucado, então pelo lado direito, encontrando o sangue seco em meu cabelo. Ela falou em sua língua incompreensível com alguém que eu não consegui ver, e então olhou fixamente para mim e pareceu se concentrar em alguma coisa.
Ela então começou um estranho movimento com as mãos, os dedos mostrando uma destreza inesperada, como se estivessem encostando com a ponta em objetos invisíveis, enquanto repetia palavras indecifráveis, mas que me pareciam estranhamente familiares, uma segunda língua diferente da que ela falara antes, uma palavra para cada movimento de um dedo. Ao final, as pontas de quase todos os seus dedos pareciam brilhar suavemente, e ela encostou as duas mãos em meu rosto.
Uma sensação de formigamento começou a tomar conta de toda minha cabeça, e percebi no mesmo instante que minha dor havia desaparecido. Meu rosto todo parecia anestesiado, e a tontura foi diminuindo.
Em seguida, ela repetiu novamente o estranho ritual, que desta vez prestei ainda mais atenção. Os movimentos pareciam semelhantes, mas não exatamente iguais, como se estivesse tocando em outros objetos invisíveis. Eu pude perceber que seus olhos - olhos verdes que poderiam perfeitamente pertencer a uma jovem humana - estavam olhando para cima enquanto ela movia os dedos com fluência e repetia palavras em sussurros, e tive a nítida impressão que estava lembrando uma sequência memorizada. Por fim, ela repetiu o mesmo processo, encostando novamente os dedos em meu rosto. Desta vez, porém, a sensação de formigamento, que já havia desaparecido, não retornou.
- Está feito - ela falou, enquanto se levantava com a graça de um felino - em algumas horas conseguiremos falar com ele.
"Eles falam português". Foi meu primeiro pensamento, e imediatamente percebi que não, que ela havia falado na mesma linguagem de antes, mas eu consegui entender o que ela disse.
- Tem certeza que ele não fala Talodon? - a voz era em um timbre mais grosso, e imediatamente associei com um adulto do sexo masculino. Eu percebi que, embora conseguisse entender o que ele havia dito, a língua em si permanecia um mistério. Era como se houvesse um tradutor automático me repetindo o que ele dizia, pelo menos foi a comparação mais próxima que consegui imaginar.
- Tenho. Ele só tem uma língua nativa, e parece conhecer uma segunda língua, mas não é tão fluente nela. Nenhuma delas me parece familiar. Acho que vai levar horas para eu conseguir entender o que ele fala. Deve levar o mesmo tempo para ele entender o que falamos.
Eu pensei em dizer alguma coisa, mas então resolvi ficar em silêncio. De alguma forma, ela me curou e me fez entender o que eles falavam, mas parecia achar que ainda iria levar horas para que funcionasse.
- Faça-o se levantar, então. Ainda quero voltar para o acampamento antes do anoitecer. - Eu quase tentei me levantar quando ouvi, mas me dei conta que eles achavam que eu não entendia o que falavam. A jovem, de todo modo, pegou meu braço, e com sua ajuda eu me levantei. Só então consegui ver a quem pertencia a voz.
O homem, não um homem obviamente, mas era mais fácil pensar nele assim, possuía um cabelo encaracolado, parecendo um pouco a juba de um leão, que descia pelos ombros, e uma musculatura impressionante, mas não descomunal. Seu rosto e corpo, como ela, pareciam a pele de um leopardo, mas quase sem manchas, quase só um amarelo, com uma poucas marcas escuras. Vestia apenas calças que pareciam o pelo de algum animal, e tinha uma espada na cintura. Havia outros também, mas alguns passos mais distantes, todos próximos de ou montados em cavalos.
Imaginei que ficaria tonto ao levantar, mas me sentia extremamente bem. Não apenas a dor e tontura haviam passado, mas me dei conta que quase não sentia fome e frio, como antes.
- Vamos - a jovem disse, e novamente tive que me esforçar para não reagir a sua fala, e só comecei a caminhar quando ela me conduziu pelo braço, minhas mãos ainda atadas às minhas costas.
"Como eu explicava os cavalos? Seria possível imaginar os Lepare como fruto de alguma evolução convergente, e não como primos próximos do homo sapiens. Ainda assim eles seriam obviamente vertebrados, e mesmo mamíferos. Não seria necessário examinar seus ossos, bastava olhar o maxilar, a estrutura dos cinco dedos, os ombros, para perceber que possuíam exatamente o mesmo plano básico de esqueleto dos vertebrados que evoluíram naturalmente na Terra. Mas, sua aparência pelo menos dava um leve ar alienígena a eles. Nas memorias que eu ainda possuía, eu nunca havia visto nada parecido, exceto em filmes de ficção científica. Mas, e os cavalos? Que explicação eu daria para a existência de cavalos, se apenas parasse para pensar neles?"
- Pelo amor de Deus, ninguém mais bata na minha cabeça - eu falei assim que comecei a despertar, apenas parcialmente sabendo onde me encontrava. A lembrança de uma batida forte me derrubando - uma segunda batida - era a coisa mais presente em minha mente.
Eu tentei me levantar, apenas para perceber que minhas mãos estavam amarradas atrás das costas, e que minha tontura havia voltado.
Uma criatura se aproximou de mim, o rosto, que parecia uma mistura de um humano e um felino, quase encostando no meu próprio rosto. Uma menina com pele de um leopardo no lugar de pele humana, foi o que me pareceu. Ela, se de fato era do sexo feminino, falou algo em uma língua que não entendi.
- Não estou entendendo. Me soltem por favor - comecei a falar, apenas para parar ao me dar conta que não tinha como eles entender o que eu falava. A criatura - a jovem - me vi chamando-a, pois pelo menos pareceria ser uma uma jovem mulher se fosse humana, pareceu mais insistente. Repetiu várias frases em sua língua estranha, até se convencer que eu não a estava entendendo. Foi só quando deixei escapar um gemido, a cabeça ainda latejando, que ela parou e me examinou, passando os dedos pela minha cabeça. Primeiro encostou no lado esquerdo, que estava dolorido com a batida mas não parecia tão machucado, então pelo lado direito, encontrando o sangue seco em meu cabelo. Ela falou em sua língua incompreensível com alguém que eu não consegui ver, e então olhou fixamente para mim e pareceu se concentrar em alguma coisa.
Ela então começou um estranho movimento com as mãos, os dedos mostrando uma destreza inesperada, como se estivessem encostando com a ponta em objetos invisíveis, enquanto repetia palavras indecifráveis, mas que me pareciam estranhamente familiares, uma segunda língua diferente da que ela falara antes, uma palavra para cada movimento de um dedo. Ao final, as pontas de quase todos os seus dedos pareciam brilhar suavemente, e ela encostou as duas mãos em meu rosto.
Uma sensação de formigamento começou a tomar conta de toda minha cabeça, e percebi no mesmo instante que minha dor havia desaparecido. Meu rosto todo parecia anestesiado, e a tontura foi diminuindo.
Em seguida, ela repetiu novamente o estranho ritual, que desta vez prestei ainda mais atenção. Os movimentos pareciam semelhantes, mas não exatamente iguais, como se estivesse tocando em outros objetos invisíveis. Eu pude perceber que seus olhos - olhos verdes que poderiam perfeitamente pertencer a uma jovem humana - estavam olhando para cima enquanto ela movia os dedos com fluência e repetia palavras em sussurros, e tive a nítida impressão que estava lembrando uma sequência memorizada. Por fim, ela repetiu o mesmo processo, encostando novamente os dedos em meu rosto. Desta vez, porém, a sensação de formigamento, que já havia desaparecido, não retornou.
- Está feito - ela falou, enquanto se levantava com a graça de um felino - em algumas horas conseguiremos falar com ele.
"Eles falam português". Foi meu primeiro pensamento, e imediatamente percebi que não, que ela havia falado na mesma linguagem de antes, mas eu consegui entender o que ela disse.
- Tem certeza que ele não fala Talodon? - a voz era em um timbre mais grosso, e imediatamente associei com um adulto do sexo masculino. Eu percebi que, embora conseguisse entender o que ele havia dito, a língua em si permanecia um mistério. Era como se houvesse um tradutor automático me repetindo o que ele dizia, pelo menos foi a comparação mais próxima que consegui imaginar.
- Tenho. Ele só tem uma língua nativa, e parece conhecer uma segunda língua, mas não é tão fluente nela. Nenhuma delas me parece familiar. Acho que vai levar horas para eu conseguir entender o que ele fala. Deve levar o mesmo tempo para ele entender o que falamos.
Eu pensei em dizer alguma coisa, mas então resolvi ficar em silêncio. De alguma forma, ela me curou e me fez entender o que eles falavam, mas parecia achar que ainda iria levar horas para que funcionasse.
- Faça-o se levantar, então. Ainda quero voltar para o acampamento antes do anoitecer. - Eu quase tentei me levantar quando ouvi, mas me dei conta que eles achavam que eu não entendia o que falavam. A jovem, de todo modo, pegou meu braço, e com sua ajuda eu me levantei. Só então consegui ver a quem pertencia a voz.
O homem, não um homem obviamente, mas era mais fácil pensar nele assim, possuía um cabelo encaracolado, parecendo um pouco a juba de um leão, que descia pelos ombros, e uma musculatura impressionante, mas não descomunal. Seu rosto e corpo, como ela, pareciam a pele de um leopardo, mas quase sem manchas, quase só um amarelo, com uma poucas marcas escuras. Vestia apenas calças que pareciam o pelo de algum animal, e tinha uma espada na cintura. Havia outros também, mas alguns passos mais distantes, todos próximos de ou montados em cavalos.
Imaginei que ficaria tonto ao levantar, mas me sentia extremamente bem. Não apenas a dor e tontura haviam passado, mas me dei conta que quase não sentia fome e frio, como antes.
- Vamos - a jovem disse, e novamente tive que me esforçar para não reagir a sua fala, e só comecei a caminhar quando ela me conduziu pelo braço, minhas mãos ainda atadas às minhas costas.
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