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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


sábado, 10 de agosto de 2013

Bloqueio Mental

   Não imaginei que a médica seria tão jovem. Não pude deixar de pensar nisto ao ver a garota à minha frente. Difícil acreditar que era uma pesquisadora conceituada. Ela sorriu quando entrei em seu consultório, e, com um gesto, indicou para eu sentar no sofá à sua frente.
   Também não imaginei que seria tão bonita.
   Ela não chegou a se levantar e apertar minha mão, mas isto não era falta de educação como seria quando eu era jovem. Depois das duas grandes epidemias de gripe, alguns hábitos foram mudando no mundo. De todo modo, seu sorriso era simpático.
   - Gostaria de uma água, ou um chá? - Ela ofereceu, mas eu recusei tentando transmitir simpatia também. Seu sorriso era contagioso. Após mais algumas amenidades, ela foi direto ao ponto.
   - Diga-me então, Senhor Jerry,  em que posso ajudá-lo?
   Eu hesitei um instante, depois de sorrir novamente e pedir para ela me chamar apenas de Jerry. Será que, depois de tanto tempo, ainda valia a pena? Não seria melhor deixar o passado enterrado?
   - Minhas memorias, de quando eu era criança, eu quero recuperar elas. Eu preciso.
   - De toda sua infância, ou de alguns momentos mais marcantes, Jerry? Se quisermos recuperar muitas lembranças, demoraremos algumas seções.
   - Não, não. Não quero apenas lembrar momentos da infância É uma única memoria, que ficou bloqueada por quase quarenta anos. Eu fiz de tudo, mas nunca consegui lembrar o que ocorreu em um determinado dia, em 2015.
   - Foi um evento traumático?
   Eu acenei que sim, sem abrir minha boca. Comecei a suar frio.
   - Foi a noite em que meus pais morreram. Assassinados. Minha vida acabou naquele dia - Lágrimas escorriam por trás de meus óculos escuros, descendo pelo meu rosto, enquanto eu prosseguia em meu relato - Eu só lembro da polícia chegando, me encontrando encolhido na sala, meus pais no quarto, mortos. Nunca encontraram o assassino, mas eu tenho certeza que o vi, só não consigo lembrar.
   Eu prossegui, enquanto as lágrimas seguiam livremente, envergonhado comigo mesmo, mas incapaz de contê-las - desde aquele dia eu me isolei de todos, mal saio de casa faz quarenta anos, perdi peso, perdi todo meu cabelo - uma vez eu vi uma foto de sobreviventes de campos de concentração da segunda grande guerra. Eu pesava menos de quarenta quilos, e poderia facilmente ser confundido com um deles.
   Ela me deixou falando, desabafando. Contei que minha sorte foi que minha família deixou dinheiro suficiente para me sustentar, e que eu fazia alguns trabalhos a distância, pela Internet, mas que não saía mais de casa, que tinha acessos de pânico no meio de muitas pessoas. Por isto também que vim no último horário dela, às oito da noite, quando não havia mais movimento.
   - E você já tentou lembrar daquele dia, já fez algum tratamento?
   Eu acenei que sim. Nem hipnose funcionou, eu expliquei.
   - O que fazemos aqui não é hipnose, Jerry. Você vai tomar um composto que afeta diretamente seu cérebro, que irá reativar o acesso a suas memorias. Meu papel é apenas de conduzir sua consciência para as memorias corretas. Mas há uma coisa que eu preciso que você entenda, antes de começarmos.
   Eu pedi para ela explicar, dizendo que estava prestando atenção. Já estava um pouco melhor. Era impressionante que mesmo quarenta anos depois, eu ainda ficava tão mal por apenas mencionar aquele dia.
   - Esquecermos eventos traumáticos é uma ação de nosso cérebro para nos protegermos, Jerry. Quando recuperarmos suas memorias nós não estaremos apenas descobrindo o que houve, estaremos fazendo com que suas lembranças voltem a estar tão vivas quanto no dia que aconteceram, e desta vez não haverá como você simplesmente bloqueá-las novamente. Entende o que eu digo, os riscos que isto vai significar para você?
   Eu concordei, e ela me fez assinar um termo de responsabilidade cheio de cláusulas, lendo uma a uma e explicando tudo em detalhes. Basicamente a responsabilidade seria exclusivamente minha por qualquer psicose ou dano mental que eu viesse a ter. Não importava. Eu tinha que saber o que havia acontecido naquela noite.
    - É só isto - eu perguntei quando ela me mostrou a pílula. Uma simples pílula iria trazer de volta a lembrança que eu esqueci por 40 anos?
   Eu engoli com um copo de água e me deitei no divã, enquanto ela sentou do meu lado.
   - O que vou fazer agora não é hipnose, Jerry, nem uma sessão de análise. O que vou fazer é ajudar a conduzir sua consciência para aquela noite, para que o medicamento atue sobre a estrutura de neurônios correta, e monitorar seus sinas vitais. Certo? Agora feche os olhos e acompanhe o que eu falo. Tente ficar o mais relaxado possível.
   Foi incrível. A medida que ela falava, me perguntando sobre aquele dia, era como se eu estivesse viajando no tempo, revivendo minha infância. Ela havia dito que era um efeito da droga, que as memorias pareceriam tão vivas que seria como se estivessem acontecendo neste momento.
   Eu não estava lembrando dos meus doze anos. Eu tinha doze anos novamente. Era noite, e eu acordei me sentindo enjoado e com uma terrível dor no estômago. Era uma sensação que eu viria a ter muitas vezes nos anos seguintes, mas naquele dia era algo novo, diferente e mais agoniante que qualquer sensação que já tivesse sentido.
   Eu levantei da cama, sai do quarto ainda no escuro, e caminhei até o quarto dos meus pais. Uma parte de mim dizia para não entrar lá, para voltar para cama, como se eu estivesse mesmo no passado, como se não fosse apenas uma lembrança de algo que já aconteceu, mas a voz da médica era insistente. - diga-me o que está acontecendo, Jerry, diga-me o que você vai ver dentro do quarto. Isto foi há quarenta anos, seja o que for, não pode machuca-lo mais.
   Eu entrei no quarto, esperando ver meus pais mortos, um assassino sobre eles, cortando suas gargantas, mas não havia nada de anormal. Eles dormiam tranquilos, pude ver quando acendi a luz. A súbita claridade fez meus olhos arderem.
   - Querido, o que houve - como era bom ouvir a voz de minha mãe, novamente, depois de tanto tempo, ver seu rosto tal como estava da última vez que a vi. Meu olhos se encheram novamente de lágrimas, a lembrança era tão real.
   - E o que aconteceu depois? - a voz da médica penetrando no mundo das minhas lembranças.
   - Estou me sentindo mal - eu havia dito, com uma voz embargada, enquanto segurava e comprimia minha barriga com a mão. E havia, então, me aproximado de minha mãe, que me abraçou.
   Neste instante a memoria se desfez e eu abri os olhos, gritando:
   - Eu não quero lembrar!
   - Jerry, você está me machucando. Solte meu braço!
   Para minha surpresa, eu estava segurando o pulso da minha médica, com força. Tentei soltar, mas não consegui abrir minha mão.
   - Eu não quero lembrar. Eu não quero saber o que aconteceu!
   - É tarde demais, Jerry, eu lhe avisei. Os nanocompostos já acharam a estrutura neural certa. Você vai lembrar, mesmo que não queira. Não temos como interromper o processo.
   O que ela falava era verdade. Eu podia ver a cena diante de mim, se reconstruindo novamente, mesmo de olhos abertos, mesmo sem ela dizer nada. Minha mãe estava me abraçando. Meu sentidos estavam multiplicados por mil. A sensação do abraço, sua voz doce, seu cheiro. Principalmente seu cheiro, que parecia penetrar e dominar todo meu corpo, enquanto minha boca se aproximava de seu pescoço. Meu corpo sabia o que eu precisava, mesmo que eu próprio não soubesse.
   - Você não está entendendo - eu disse, enquanto o horror tomava conta de mim, as imagens em minha mente avançando sua trágica  sequência - Fui eu que a matei. Fui eu que matei os dois. Você não podia ter despertado estas memorias.
   - Jerry, isto foi há quarenta anos. Você era uma criança. Você tem que aceitar que isto é passado, terá que aprender a se perdoar. - Ao mesmo tempo que falava, tentando me acalmar, ela continuava tentando soltar seu braço. Eu senti pena por ela, mas como um pouco de pena poderia me parar? Eu mal a conhecia, que importância ela tinha perto de minha mãe, perto de meu pai?
   - Não era a morte de meus pais que eu não podia ter lembrado - eu falei, enquanto aproximava seu pulso de meu rosto - não foi isto que eu tinha que ter esquecido para sempre.
   A fome era agora avassaladora, como foi durante a maior parte destes quarenta anos, mas agora não havia nada para deter-me, nenhum bloqueio. Em minhas lembranças, meu pai estava acordando, gritando, horrorizado, mas eu estava feliz, tão feliz. O líquido inundando meus sentidos, minha alma, me trazendo uma sensação que nunca antes, e nunca depois daquela noite, voltaria a sentir.
   Até agora.
   Enquanto minha língua passava suavemente pelo seu pulso, sentindo o calor que passava por dentro das veias, eu falei a última coisa que minha médica ouviria.
   - Você não devia ter me feito lembrar quão doce era o gosto de sangue.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Linguagem de Máquina /8 - Final

  Foi o mais longo e cansativo mês da vida de Rubens. Ele trabalhava freneticamente, dia e noite, ao mesmo tempo fazendo de tudo para que a criatura não percebesse o que ele estava realmente criando. O que ele aprendeu neste período era indescritível, uma nova maneira de desenvolver sistemas, literalmente uma nova forma de pensar.
   Ele já sabia o que havia de errado com as simulações, o porquê delas continuamente entrarem em uma espécie de loop. Na verdade era menos um erro e mais uma questão de ajuste fino, de alterações sutis no fluxo de dados entre as diferentes partes da estrutura neural. O mais complicado era que ele não podia alterar a estrutura em si, só podia influenciá-la, como se fosse um maestro dando instruções para incontáveis instrumentos.
   Já sabotá-las era mais complexo, especialmente porque ele não podia ser muito óbvio. No final, o próprio ataque epilético de Vanessa foi o que lhe deu a ideia. Ele iria fazer as inteligências artificiais terem uma reação equivalente, parecida com o loop que ele vinha tentando resolver, mas mil vezes mais forte. E, principalmente, eterno. As redes neurais afetadas nunca sairiam do loop.
   O dia que ele liberou sua última versão do sistema, com um controlador para iniciar a sabotagem em alguns minutos, foi o mais tenso de todos. Agora era só uma questão de esperar.
   - Você está tenso. Sua pulsação está acelerada - a voz falou no alto-falante de seu escritório. Era tão óbvio agora, como ele podia ter imaginado que era uma equipe de pessoas, que era sequer um ser humano a falar com ele.
   - Não é nada - faltavam minutos agora. Ele só precisava não deixar a criatura desconfiada. Criatura ou como quisesse chamá-la. Nenhum governo do mundo conseguiria criar um software tão sofisticado, capaz de criar inteligências artificiais, alterar vídeos de pessoas em tempo real. Não, era uma máquina por trás de tudo, uma máquina inteligente, e ele estava ajudando-a a se tornar mais parecida com um ser humano, ou a criar um exército de duplicatas, o que fosse.
   Mas ia terminar agora. Neste instante.
   Foi o completo anticlímax. De repente, a tela de seu terminal ficou escura.
   - Ola? Alguém aí?
   Nenhuma resposta.
   - Peguei você. Eu estava certo, não estava? Era uma inteligência artificial que estava por trás de tudo isto. E agora você está em um loop eterno. Não há como tirá-lo dele, nunca.
   Rubens se levantou e foi até a sala, encontrar Vanessa. Ele iria levá-la com ele, descobrir quem era ela e como foi trazida até ali. Ele iria curá-la do que quer que tivesse sido feito com ela, e eles ficariam juntos. Provavelmente a criatura havia conseguido afetar a mente dela de algum jeito, através de sua conexão neural, mas ele ia fazer de tudo para recuperá-la. Estes meses presos nas mãos de um software inteligente ficariam para trás.
   Vanessa o esperava na sala.
   No chão.
   Em convulsões.
   Ele correu para ela e ficou segurando sua cabeça para que não se machucasse. Já sabia que tentar imobilizá-la ou colocar alguma coisa em sua boca era tolice. Ele só precisava evitar que ela se machucasse e aguardar que as convulsões passassem.
   Mas elas não passaram.
   E, lentamente, a última peça que faltava em seu quebra-cabeças, começou a se encaixar no lugar.
   O sistema que ele ajudou a desenvolver, que manipulava uma rede neural extremamente complexa, que às vezes entrava em loop...
   Vanessa tendo convulsões quando ele perguntou sobre seu passado, confrontando sua mente com a programação enviada pelo seu acesso neural, programação que ele ajudou a desenvolver...
   E que ele sabotou para criar um loop infinito.
   - Vanessa! Vanessa - ele repetiu.
   E repetiu.
   Mas ele sabia que ela não iria ouvi-lo mais.


fim

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Último Grande General do Império Humano

   Hans Sebastian Kahn, último general do império humano, e certamente o maior general de todo a história do terceiro milênio, estava morrendo. Ele começou a morrer no exato instante que o campo de estase que mantinha seu corpo vivo foi desligado.
   Lekster, o lagarto, se perguntou se não deveria ter insistido para manterem o campo ligado, mas depois encolheu os ombros, em um gesto que aprendeu com os humanos que o criaram desde que nasceu. Melhor assim, o general Kahn merecia uma morte digna, era hora dele descansar. Hora de Lekster se despedir.
   - Lekster, é você? - a voz era quase um murmúrio, mas os olhos do general estavam fixos no lagarto. As drogas injetadas em seu corpo aliviavam a dor sem fazê-lo perder a lucidez. Lekster poderia se despedir pela última vez de seu general.
   - Sim, general, sou eu. Sempre aqui para servi-lo.
   O general fechou os olhos por um instante, suspirou, e então olhou novamente para Lekster, e esboçou um sorriso. - Nós conseguimos, então.
   - Sim, senhor, nós conseguimos. A Terra está salva. Como o senhor previu, os Itrans vieram nos ajudar. Trouxeram toda sua frota.
   - Eu não lhe disse, Lekster? Eu não lhe disse? - e o general começou a rir, até seu riso se tornar uma tosse, que terminou com sangue que ele guspiu no rosto do lagarto. Este fingiu nem perceber, o coração apertado por saber que não restava muito tempo, agora.
   - Conte-me como foi, Lekster, conte-me o que eu perdi.
   - Não há muito para contar, meu senhor. Fizemos o impossível. Na verdade, o senhor fez. Detivemos por quase 10 dias uma força mais de cem vezes superior a nossa.
   - Nós tínhamos que resistir, meu amigo, éramos a única coisa entre os Parddos e a destruição da Terra. A última frota que restou. Nós tínhamos que lutar até a última nave.
   - E foi o que fizemos meu general. Nossa nave foi a última a resistir. Os Itrans saíram do hiperespaço no momento que o torpedo nos atingiu. Eu não sei se o senhor chegou a vê-los no sensor.
   - Não - o general falou agora com uma voz mais fraca. Haviam lhe dito que ele não teria muito tempo, apenas as poderosas drogas injetadas ainda mantinham o general vivo - não, não vi, mas não importa. A única coisa que importa é que a Terra está salva.
   - Sim, meu general. A Terra está salva.
   - A Terra está salva - o general fechou os olhos, e Lekster, o único alienígena a jamais servir em uma nave de guerra humana, sabia que ele não voltaria a abri-los.
   - Ele se foi. - O médico Parddos se aproximou, vindo de trás do general, de fora de seu campo de visão.
   - Eu sei. Obrigado. Obrigado por deixá-lo descansar acreditando que os Itrans vieram, que sua última batalha não foi em vão.


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Linguagem de Máquina 7/8

   Rubens dividia todo seu tempo livre entre dois mistérios. Durante o dia, ele tentava descobrir que tipo de sistema estava ajudando a desenvolver. A noite, ele buscava uma forma de acessar a Internet diretamente. Ele tinha certeza que tudo que acessava era de alguma forma manipulado. Provavelmente, desde que ele foi mantido isolado nesta casa.
   Havia um terceiro mistério que ele havia desistido de resolver, pelo menos por enquanto: quem era Vanessa. Fazia uma semana desde que ela havia tido uma convulsão, quando ele perguntou sobre sua família, e só agora ela parecia estar voltando ao normal, pelo menos ao normal que ele estava acostumado a esperar dela.
   Felizmente, Rubens estava conseguindo algum progresso nas outras frentes. Em especial, agora ele tinha acesso a ambientes de simulação para testar o sistema, o que queria dizer que ele também conseguia entender o que estava sendo simulado. Como desconfiava, ele estava ajudando a desenvolver uma rede neural, só que não tinha ideia de quão sofisticada ela era até testá-la pela primeira vez.
   - Meu nome é João Silva - havia lhe respondido a primeira simulação. Nada que lhe chamasse a atenção, mas cada resposta vinha com detalhes mais e mais ricos - eu sou um funcionário público. Trabalho como administrador de redes - ele levou quase duas dezenas de perguntas até conseguir fazer a simulação começar a apresentar falhas nas respostas.
   A simulação atual era a terceira em sete dias, cada uma mais perfeita que a anterior, só que todas sempre apresentando o mesmo problema. Quando ele começa a fazer perguntas mais pessoais, que só um ser humano saberia responder, todas elas entravam em algum tipo de loop. Era exatamente a visualização do problema que ele havia percebido.
   - Não sei mais o que fazer - ele falou alto, a voz alterada pela frustração. Na verdade, foi apenas um desabafo, que ele não espera que fosse respondido.
   - Você está no caminho certo - veio a voz do alto-falante - os sintomas de perda de referência estão ficando menores e mais espaçados.
   - Eu já nem tenho certeza do que estou fazendo. Por que é tão importante que a simulação se pareça um ser humano nos mínimos detalhes? Ela já parece tão inteligente quanto uma pessoa, exceto quando a conversa se torna muito pessoal.
   - A simulação deve ser capaz de reagir como um ser humano em todas as situações de uma conversa real - foi a resposta.
   "Um espião". Um dos mistérios subitamente começou a fazer sentido. "Eles não estão apenas construindo uma rede neural que pense parecido com um ser humano, eles estão querendo algo que possa se passar por um ser humano de verdade". Certamente o governo americano poderia pensar em um cem número de utilidades para um sistema destes.
   Rubens trabalhou mais algumas horas no problema, parando apenas para comer e conversar um pouco com Vanessa. Sob certos aspectos, conversar com ela era tão frustante quanto conversar com as simulações.
   A noite, Rubens se voltou para seu segundo mistério. Como acessar a Internet e descobrir o que estava acontecendo no mundo de fora, sem que a informação passasse por nenhum filtro.
   No primeiro dia, Rubens havia se concentrado em acessar informações em vídeo. Por mais avançado que o governo americano fosse - ele não tinha mais a menor dúvida de que era quem estava por trás de tudo - eles não poderiam alterar todos os vídeos e noticiários da internet. No máximo conseguiriam bloqueá-los, mas alterar imagens e sons de pessoas falando em tempo real era algo muito além de qualquer tecnologia existente.
   Nos últimos dias ele começava a acreditar que era exatamente isto que estava acontecendo. Não havia como provar, mas era apenas uma sensação. Ele tinha um sentimento que o que passava na Internet não era real.
   No terceiro dia ele desconectou completamente um dos terminais da Internet, e passou os dias seguintes montando um sistema de criptografia. Quando estivesse pronto, ele ia tentar reconectar na rede e acessar um site de notícias. Se não fosse bloqueado, ele ia ter acesso direto a informação original do site.
   Amanhã, ele disse para si mesmo, amanhã eu vou o que está acontecendo lá fora, e o que estão escondendo de mim.
   Mas foi no meio da noite mesmo que ele acordou, no meio de um sonho. "Não é o governo americano", ele pensou, os olhos arregalados, a respiração ofegante, enquanto se sentava subitamente na cama, "não é nenhum governo. Deus do céu, eu sei quem está por trás disto".

quinta-feira, 28 de março de 2013

Linguagem de Máquina 6/8


   Vanessa se contorcia em convulsões no chão, ao lado da mesa.
   Rubens não sabia o que fazer, e primeiro afastou as cadeiras, depois tentou segurá-la pelos braços.
   - O que está acontecendo? Vanessa? - era óbvio que ela não estava escutando ou reagindo. Primeiro ele tentou imobilizá-la, talvez por um minuto ou dois, mas parecia só piorar as coisas, e ele ficou com medo de machucá-la. Rubens se lembrava de ter visto em algum lugar que se colocava uma colher na boca de pessoas em convulsão para não engolirem a língua. Ele chegou a soltá-la e pegar uma colher na mesa, mas quando se abaixou novamente, as convulsões haviam parado.
   - Vanessa? - ela olhou para ele e começou a se afastar, no chão mesmo, se arrastando de costas. Os olhos estavam arregalados. A boca se abriu, como se fosse gritar, mas ela não emitiu nenhum som.
   - Vanessa? - ele repetiu - o que houve? você está bem?
   Vanessa fechou os olhos, e então soltou um suspiro. Parecia que seu corpo começava a relaxar. Então abriu os olhos e se levantou. Ela caminhou lentamente até a mesa e pegou um prato na mão.
   - Você está melhor? O que aconteceu? - por um momento, Rubens ficou com receio que ela iria voltar a simplesmente ignorar suas perguntas, como nos primeiros dias, mas desta vez ela respondeu com seu eterno sorriso.
   - Não houve nada. Por quê?
   - Você teve uma convulsão. Agora mesmo - Rubens apontou para as cadeiras jogadas pelo chão.
   - Não lembro - ela hesitou, e baixou a cabeça, a voz quase num murmúrio - eu sou epilética. Desculpe se assustei você.
   Vanessa não falou mais nada, e começou a recolher os pratos da mesa. Rubens sabia que quando estava trabalhando, ela praticamente não respondia suas perguntas, na verdade parecia nem perceber sua presença.
   Rubens decidiu ficar por perto, para ter certeza que ela não ia ter uma nova convulsão. Normalmente ele a deixava sozinha e ia para o escritório acessar a Internet ou trabalhar, mas desta vez resolveu ficar na sala, observando-a.
   Depois de recolher toda a mesa, e lavar a louça, ela foi até a sala, sem prestar atenção nele, sentou em um sofá, e ligou a televisão.
   Ele a seguiu, e tentou começar uma conversa por duas ou três vezes, mas ela não respondia, como nos primeiros dias dela na casa. Para testar, ele pediu um refrigerante, e ela imediatamente respondeu sorrindo - claro, já estou trazendo - e se levantou para pegar para ele.
   Enquanto ela assistia a programação, ele se conectou na Internet.  Alguma coisa não estava encaixando - mais uma peça de um quebra-cabeça que parecia a cada dia mais confuso - e ele queria confirmar o que já sabia: pessoas com epilepsia não recebiam implantes neurais, pelo menos não implantes padrão. Se recebessem algum implante, seria um equipamento médico, não o mesmo tipo que eles dois usavam.
   Ele só levou alguns segundos para chegar em uma página sobre epilepsia, a mesma que ele já havia lido uns dois anos antes, por acaso, enquanto navegava. Ao contrário do que ele lembrava, a página não falava nada sobre restrições aos implantes neurais.
   Só para confirmar, ele verificou a data e registro das modificações da página, depois visitou páginas sobre implantes neurais. Nenhuma mencionava epilepsia como restrição a implantes.
   - Eu me enganei - ele falou em voz alta, para si mesmo - podia jurar que pacientes epiléticos não podiam usar implantes.
   Mas não foi para si mesmo que Rubens falou, foi para quem o estava vigiando.
   Ele não estava enganado, ele lembrava muito bem de ter visitado algumas daquelas páginas antes.
   A Internet que ele estava vendo estava sendo manipulada.

domingo, 24 de março de 2013

Apenas nós dois

  - Feche a janela, feche a janela!
   Mana desceu correndo as escadas e entrou na sala de jantar da nossa casa. Como sempre, nas noites de tempestade, ela estava chorando, com medo. Queria poder fazer alguma coisa, mas era sempre assim, e agora parecia que todas as noites eram noites de tempestade. Será que nunca mais iria melhorar o tempo, sempre uma tempestade para assustar mana?
   - Calma, mana, está tudo bem. Não precisa ter medo.
   - Não está bem - ela berrava - não está nada bem. Papai disse que ia vir e não veio. E agora começou uma tempestade. E está chovendo dentro do meu quarto. E está tudo escuro lá fora. E eu estou com medo - e ela gritou mais alto ainda - e papai não veio!
   Eu segurei mana pela mão, e subimos até seu quarto. A janela estava aberta, como sempre. O vento estava revirando tudo, a porta escancarada. Não era só água, tinha areia, terra, cinzas, tudo sendo carregado para dentro do quarto pela tempestade.
   - Olha, mana, eu vou fechar a janela, está bem? Eu fecho a janela e vai ficar tudo bem. Entendeu? A tempestade não vai entrar, não vai fazer mal nenhum para a gente, certo? Vai ficar tudo bem - eu menti para ela. Que mais eu podia fazer? Pelo menos, ela se acalmou um pouco.
   Eu fechei a janela e o barulho diminuiu, o vento dentro de casa parou. Mas a casa inteira parecia balançar. As janelas batiam e batiam, prestes a arrebentar a cada rajada mais forte. Na verdade já arrebentaram há muito tempo, mas não importava.
   - Brigada mano. Eu estava com medo. Ainda estou. Quando o pai vem?
   - Ele já está chegando, mana, já tá quase chegando - eu menti de novo. Era só o que eu fazia, mentir para mana e tentar que ela não ficasse muito assustada. Era só por isto que eu estava aqui, para cuidar da mana.
   - Vamos ver a tevê, mano? Quem sabe o pai aparece na tevê? - tinha dias que ela não via tevê, que eu conseguia ler historias para ela, mas eram cada vez mais raros. Era tevê, tevê, tevê, e eu sabia que ela ficava só mais assustada depois.
   - Mana, me deixa ler um livro para você, está bem? Eu leio Judy Moody, aquele que você gosta, que ela quer ficar famosa.
   - Eu quero ver tevê! - ela gritou, e desceu correndo as escadas. Não tinha muito que eu podia fazer, não tinha como impedir, só podia ficar ao seu lado e tentar que ela não ficasse ainda mais nervosa.
   Quando entrei na sala ela já estava no sofá, sentada, assistindo a tevê com os olhos vidrados. Já não tinha eletricidade há muito tempo, mas não importava, a tevê sempre passava a mesma coisa. Era sempre o mesmo cara falando, a imagem tremida, a câmera balançando.
   - Não saiam de suas casas. Fiquem onde estão e aguardem novas orientações. Tranquem portas e janelas. Evitem a chuva, evitem contato com partículas radioativas. Repetindo, não saiam de suas casas.
   - Mano, eu estou com medo. A guerra começou, não começou?
   - Sim, mana, a guerra começou.
   - Mas o pai é piloto. Eles não vão deixá-lo voltar para casa - e ela começou a berrar de novo - eu quero o pai.
   - Calma mana, o papai tá vindo. A gente só tem que esperar, o pai tá vindo.
   Mana subiu correndo a escada, de volta para seu quarto. A tevê ainda mostrou por alguns segundos a imagem do cogumelo no fundo de onde o cara falava, depois só estática. Depois, quando mana já tinha sumido da vista, além da escada, a tevê ficou apagada, toda quebrada e meio afundada no meio do pó que foi se acumulando ao longo dos anos.
   Eu subi correndo a escada, mas mana já vinha descendo, chorando, recomeçando todo o ciclo.
   - Feche a janela, feche a janela!
   O vento já estava entrando em seu quarto de novo, o pó sendo jogado para fora da porta, as janelas, há muito destruídas, incapazes de deter o vento.
   Eu abracei mana, tentando acalmá-la, garantindo que papai já ia chegar, mesmo sabendo que era mentira. Papai nunca voltou. Ninguém nunca voltou.
   Para sempre, estávamos sozinhos com a tempestade, eu e a mana. Apenas nós dois.
   Apenas dois fantasmas.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Linguagem de Máquina 5/8

   Rubens estava há três dias parado em um mesmo problema, e não tinha a menor ideia do que era, só sabia que havia algo de errado. Nos últimos dias, seu trabalho havia se tornado imensamente mais sofisticado, e ele já não conseguia entender exatamente tudo que estava fazendo, só tinha uma percepção que algumas partes não estavam se encaixando mais. Era quase mais um trabalho artístico que um programa, como se estivesse pintando um quadro e faltasse corrigir algum detalhe. O problema é que ele estava pintando um quadro sem enxergar, e foi o que falou.
   - Há algum erro aqui, pelo menos eu sinto que alguma coisa está errada, mas eu não tenho como resolver sem saber exatamente o que estou desenvolvendo.
   A resposta, como sempre, veio de imediato - seu trabalho é identificar e corrigir os erros nas partes do sistema que lhe forem repassadas. Entender o todo é irrelevante.
   - Bom, então vão ter que resolver sem mim, ou vamos apostar que na verdade não existe nada de errado. Me passem algum outro problema e deixem este de lado - Era quase um blefe, ele tinha quase certeza que eventualmente ia conseguir resolver, mas estava cansado de tantos segredos, era como trabalhar de mãos atadas.
   - Você está correto, existe um problema, e é em um ponto crítico do sistema. Estamos esperando que você resolva para podermos avançar no desenvolvimento.
    - Olha, é óbvio que vocês têm pelo menos uma dúzia de programadores trabalhando nisto, e duvido que eles não saibam o que está sendo desenvolvido. Sinceramente, eu nem sei porque vocês precisam de mim, contratar alguém para fazer meu trabalho certamente é mais barato que tudo que vocês estão fazendo aqui, não que eu não seja grato por terem me livrado da prisão.
   - Você está equivocado, não há muitos que poderiam fazer o que você está fazendo. Precisamos que você resolva o problema atual.
   "Bom, então estou com algum poder de barganha agora", Rubens pensou.
   - Então eu preciso poder ver o que está errado. Eu só tenho a sensação de que as coisas não estão encaixando como deveriam, mas não tenho ideia do que está errado - Pela primeira vez pareceu haver uma hesitação antes da resposta vir. Será que a misteriosa voz estaria consultando algum superior?
   - Nós teremos que avaliar esta questão.
   - Ouça - Rubens respondeu, decidido a usar sua última carta - já deu para eu descobrir um pouco do que vocês estão fazendo. Era óbvio que em algum lugar estava por trás um sistema massivamente concorrente, e que é capaz de aprender ao longo do tempo. Vocês estão construindo uma rede neural, e desenvolveram alguma nova técnica de programar nela. Certamente, vocês também tem algum tipo de simulador, para ver o programa funcionando. Eu preciso ter acesso a este simulador, para testar o que estou fazendo.
   - Você terá acesso ao simulador. Amanhã estaremos liberando novas ferramentas que permitirão que você acompanhe os resultados de seu desenvolvimento.
   - Obrigado - Rubens agradeceu, mas ninguém mais lhe respondeu. Claro que seria ótimo poder simular o que quer que ele estivesse desenvolvendo, mas igualmente importante é que agora ele poderia ter uma ideia do que estava ajudando a criar. A última coisa que ele gostaria, fosse o governo americano ou não, era participar novamente de uma catástrofe como o roubo da ogiva nuclear.
   Avançando um importante passo em um mistério, ele chegou a conclusão que era seu dia de sorte, e resolveu atacar uma outra questão que o incomodava na mesma medida: Vanessa.
    Ele já havia descartado uma série de hipóteses, a começar por ela ter algum problema mental. Ele confirmou que ela tinha um implante neural subcutâneo como o dele, embora nunca a visse usando um computador. Pessoas com problemas mentais sérios eram proibidas de usar tais implantes. Isto também indicava que ela devia ser uma jovem de classe média, pelo menos, já que estes implantes não eram baratos.
   Restava a hipótese dela ser simplesmente uma garota de programa, mas isto não explicava a sensação que ele tinha que ela nunca falava com naturalidade, muitas vezes ficando simplesmente em silêncio, ao invés de responder suas perguntas. Ele estava cansando disto, estava começando realmente a gostar dela, por mais estranha que fosse, e estava na hora de saber pelo menos alguma coisa a seu respeito.
   - Vanessa - ele falou, em um tom normal de conversação, enquanto comiam o jantar que ela havia preparado. Havia decidido que era o melhor momento para tentar com mais insistência obter alguma informação - fale-me um pouco dos seus pais.
   - Não quero falar sobre isto. Vamos mudar de assunto - nos primeiros dias, ela simplesmente ficava em silêncio quando ele tocava neste assunto. Agora, pelo menos, ela respondia.
   - Estamos há dias só nos dois aqui. Eu quero saber um pouco mais sobre você. Me fale sobre sua mãe, como ela é?
   - Não quero falar sobre isto. Vamos mudar de assunto.
   - Eu insisto. Me diga pelo menos alguma coisa sobre seus pais.
   Vanessa repetiu a mesma frase de novo, e Rubens insistiu. Os olhos dela estavam bem abertos, anormalmente abertos, e ela se levantou da mesa e começou a repetir sem parar as mesmas duas frases, olhando para ele e gritando, a primeira vez que ele a havia ouvido gritar.
   Então, Vanessa caiu no chão e começou a ter uma convulsão.