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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


O Reino de Martin


Ano 4, dia 90
    Eu abri a torneira do chuveiro, e coloquei para encher a água da banheira. Nem muito frio, nem muito quente.
    E pensei em minha filha.
    Em outros dias, eu sempre colocava bem forte, quase a queimar a pele. Sempre com a esperança que, se a água estivesse suficientemente quente, eu conseguiria me sentir mais limpa ao sair do banho. Hoje, não importava. A água, a banheira, elas tinham outro propósito.
    Esta noite Aldo não me bateu. Ele quase foi gentil. Com meus olhos fechados, eu imaginava todas as formas que poderia matá-lo.
    Não seria difícil, ele era mais forte que eu, mas era pura força bruta. Lento, tosco, bêbado a maior parte do tempo. Com uma faca, como a que eu seguro na mão, ou mesmo a ponta dos meus dedos... um Gen era tão frágil quanto um ser humano, acertando o ponto certo.
    Um golpe bem rápido poderia arrancar seu olho. Isto não o deteria, não definiria a luta, mas seria divertido. Ver seu rosto se manchando de sangue, ele gritando de dor. Se apenas ele caísse em desgraça com Martin...  então, em minha fantasia, a fantasia em que Martin ainda falava comigo, eu imploraria para ele me dar a chance de fazer justiça.
    Um golpe na garganta seria como eu terminaria a luta. Será que ele demoraria para morrer? Uma imagem do senador, morrendo, três anos atrás, me veio a mente. Como todas as vezes, todos os dias, um vômito subiu até a minha garganta, e eu tentei pensar em outra coisa. E entrei na banheira.
    A água estava morna. Eu me lembrei de minha filha. Ela era tão pequena, tão frágil.
    Algumas vezes Aldo fazia festas, juntava outros soldados de Martin, em geral subordinados dele, e prostitutas.
    Eu era uma das prostitutas.
    Ele achava engraçado, não se importava em me dividir com os outros. Minha humilhação era prazer suficiente.
    Se apenas Martin soubesse. Martin me ama, ele nunca permitiria. Se apenas ele não tivesse me dito para obedecer a tudo que Aldo mandasse, não importava o que fosse.
    Seria tão fácil matá-lo...
    Eu fechei os olhos e mergulhei a cabeça na banheira. Eu poderia respirar a água? Seria possível meu desejo de morte ser tão intenso que eu apenas me afogaria na banheira? Eu veria minha filha uma última vez, em minha mente?
    Esta manhã, depois que Aldo saiu, eu me vesti e fui ao mercado. Pelo menos desta vez não havia marcas recentes em meu rosto. Mesmo assim, as pessoas olhavam para mim.
    A maioria me desprezava por achar que eu era amante de um dos soldados da elite de Martin. Alguns poucos tinham pena de mim. Eu caminhava no meio deles, mas estava em outro lugar, um lugar tranquilo, em que abraçava minha filha. Um lugar em que Martin estava comigo.
    Eles me desprezavam, ou tinham pena. Se soubessem que eu própria fui da elite de Martin, uma de suas assassinas, iriam me odiar? Se pudesse, eu ainda seria, mas Martin disse que eu serviria melhor a causa servindo a Aldo.
    Nós éramos heróis, 3 anos atrás. Havia festas nas ruas. Minha filha estava para nascer. Martin me amava.
    Agora nós éramos vilões.
    E Martin levou minha filha.
    Eu disse para mim mesma que não era culpa dele, que ele me amava. Eu disse que se Martin soubesse o que eu estava passando, ele viria me resgatar.
    Eu imaginava ele chegando, arrombando a porta, vindo me salvar.
    Mas era só uma fantasia. Eu estava sozinha. Só eu e a faca que eu guardava havia três anos. E a banheira com água quente, que ajudaria o sangue a fluir.
    Eu segurei a faca, com força, na mão esquerda, e usei para cortar o pulso da mão direita.


Ano 4, dia 337
    Duzentos e quarenta e sete dias depois que eu tentei morrer, era Aldo que estava sendo enterrado.
Eu estava curiosa para saber o que sentiria ao vê-lo, mas Martin não apareceu no funeral. Aldo era seu amigo de infância, e ele nem se deu ao trabalho de vir uma última vez se despedir. Aldo morreu em missão para Martin, tentando encontrar Dantès, o misterioso lider da nova rebelião, que parecia querer repetir os passos de Martin e tomar seu lugar. E nem assim, Martin veio.
    - Você está bem? - Nary falou em voz baixa, para não atrapalhar a cerimônia. Ela também conhecia Aldo desde pequeno. Martin havia reunido todos os conhecidos de sua infância para formar sua elite.
    - Bem? Não, não estou bem. Você sabe que não estou bem desde que Martin me abandonou - eu respondi também em voz baixa - Mas você quer saber se estou triste por Aldo estar morto? Como eu poderia estar? Você sabe o que ele fazia comigo.
    Por uns minutos ela nada respondeu. Quando por fim quebrou o silêncio, sua voz era lenta, hesitante.
    - Ele não foi sempre assim. Não foi sempre do jeito que você o conheceu. Nenhum de nós era o que nós somos hoje, Tarith, não quando éramos crianças, em Kheel. Especialmente, Aldo. - Mais silêncio, sem que eu nada respondesse. A cerimônia prosseguia, uma cerimônia mais antiga que a vida neste planeta. Aldo, em um caixão, sendo colocado no buraco escavado na terra.
    Foi só quando o pastor terminou de falar suas palavras da nova religião de Martin e começaram a tapar o caixão com terra, que Nary voltou a falar - Aldo nunca brigava, quando criança, nem para se defender.     Martin sempre tinha que estar por perto, protegendo-o das crianças maiores. Até que um dia os pais deles morreram, e Martin foi levado embora. O Aldo que você conheceu foi o Aldo que nasceu naquele dia, no dia do desastre em Kheel.
    - E como isto justifica o que ele fazia comigo?
    - Não justifica, não justifica tudo que fizemos com você. Martin não tinha o direito de... - ela hesitou por um instante - não importa. Eu vou falar com Martin, dizer que você já sofreu o suficiente. Se eu pedir, talvez ele não passe você para outra pessoa. Ou talvez eu possa indicar alguém para Martin, alguém que não vai maltratá-la como Aldo.
    Eu virei o rosto e olhei diretamente nos olhos dela - Se você quer me ajudar, tem outra coisa que você pode fazer.
    - Tarith. Não adianta me pedir novamente. Eu sei que você o ama, você não tem como não amá-lo, mas Martin não vai voltar para você. Acredite em mim, ele só vai machucá-la ainda mais.
    - Martin nunca me machucaria. Mas eu sei que preciso mostrar o quanto o amo, ele deve achar que não penso mais nele, que o esqueci. Não é isto que quero lhe pedir, Nary. Eu quero voltar a ativa. Eu quero voltar a ativa para encontrar e matar Dantès.
    - Estamos tentando a seis meses, Tarith, e ainda nem sabemos quem ele é, qual seu verdadeiro nome. Aldo era quem chegou mais perto de encontrá-lo, e olhe o que aconteceu com ele.
    - Aldo não era tão bom quanto eu, Nary. Nunca foi. Ninguém além de você era melhor em uma missão que eu. Eu era a melhor assassina que você tinha, eu aprendi como ninguém tudo que você me ensinou.
    - Martin não quer mais você em missões, Tarith.
    - Diga a ele para me deixar caçar Dantès. Ou eu vou ter sucesso, ou vou acabar como Aldo. Dos dois jeitos será o melhor, ou você acha que eu quero viver sem Martin ao meu lado? Nenhum de nós tem nada a perder se me deixar caçar Dantès.
    Ela hesitou por uns instantes. A seu modo, ela gostava de mim. E ela sabia que Martin não me deixaria em paz, que ela não poderia me proteger dele. Mas me mandar em uma missão suicida? Dependeria de quanto Martin já estava assustado com a nova revolta. - Esta bém, eu vou falar com Martin, vou tentar. É só o que posso prometer.
    - É o suficiente. - Eu disse, e me virei para ver o final do funeral de Aldo. Quase sem eu perceber, minha mão esquerda coçava a cicatriz no pulso direito, por baixo da manga da minha roupa, e eu me lembrava de quando ela ainda era recente. Eu me lembrava de como eu saí a caminhar, o pulso recém enfaixado, depois de ter tentado me matar.


Ano 4, dia 92
    Por quase duas horas eu andei de um lado para outro, observando o fluxo de pessoas que chegavam e saiam, até reunir coragem para entrar no templo do ancião. Era o segundo dia depois que eu decidi morrer.
Primeiro, eu havia atravessado a cidade, meu rosto coberto por um capuz, a capa me protegendo da chuva. Incógnita, numa região que nunca estive antes, procurando por respostas.
    O templo era dos mais simples, apenas uma casa igual a todas ao seu redor, exceto pela marca na porta para indicar que um ancião morava ali, e que aquele era um lugar de meditação e busca de respostas. A porta, simples, branca, estava permanentemente aberta, e eu entrei e tirei meu capuz.
    - Achei que nunca iria entrar.
    - O quê? - eu me virei, por um instante lutando contra o instinto de ataque, minha mão buscando instintivamente por uma arma que eu não carregava mais. Atrás da porta aberta, uma jovem Gen, pouco mais velha que eu, me olhava com uma expressão estranha.
    - Você não é a primeira pessoa que hesita em entrar em nossa casa. Eu iria convidá-la, você estava há tanto tempo na chuva, mas achei que o primeiro passo precisava ser seu.
    - Não estava hesitando - eu respondi - só não queria perturbar as orações.
    - As pessoas entram e saem. Algumas quietas, outras rindo, outras ainda conversando entre si. Esta não é uma casa do silêncio, e acho que você não iria perturbar ninguém. Mas acho também que você não veio para orar.
    - Eu - por um instante as palavras me faltaram, e me senti idiota por ter vindo até aqui. Ela estava certa, e eu concordei - não, não vim para rezar.
    - Venha, não fique na porta. Me acompanhe. - e ela indicou a direção de uma outra sala, mais ao fundo, e fez menção de me conduzir para lá.
    - Eu vim para falar com o ancião, mas já está tarde. Ele deve ter outras coisas para fazer. Eu volto depois    - Eu me virei em direção a porta, quase como que fugindo, mas o que ela me disse em seguida me fez parar.
    - Você tentou se matar, não tentou?
    - Na verdade não - eu respondi, mas minha voz baixa, os olhos fixos no chão, só naquele momento percebendo que minha mão esquerda estava todo o tempo massageando o pulso direito, por cima do curativo. Parecia que um abismo se abriria a qualquer momento sobre meus pés, e eu tive que conter as lágrimas.
    - Venha - ela encostou sua mão em meu ombro - vamos conversar.
Eu a acompanhei até a outra sala, e sentei em um dos dois sofás. Uma mesa de centro era o único outro móvel, e um pequeno origami de pássaro o único ornamento em toda a sala. Ela primeiro perguntou meu nome e disse que se chamava Dhaly.
    - Você quer falar sobre o que aconteceu?
    - Eu não tentei me matar - eu não olhava para ela, apenas para o chão - é difícil morrer cortando os pulsos, especialmente com um corte transversal. O máximo que você consegue é uma cicatriz. Ainda mais se você corta apenas um dos braços.
    - Então por que você se cortou?
    Seguiu-se um silêncio, enquanto eu realmente tentava achar o que dizer. Por fim, respondi - eu não sei. - e comecei a chorar.
    Ela esperou eu me acalmar antes de continuar, e quando dei por mim estava contando coisas que nunca havia falado a ninguém, sobre Martin, Aldo, minha filha, apenas evitando mencionar seus nomes.
    - E você ama esta pessoa, o pai de sua filha?
    Eu assenti com a cabeça.
    - E ele tirou sua filha de você? Ele também a obrigou a servir a um sádico, e nunca mais a procurou?
Eu assenti novamente, após uma ligeira hesitação. Minha cabeça começou a latejar, e eu coloquei as mãos no rosto.
    - E você ainda o ama, mesmo sabendo que ele não sente nada por você, se é que alguma vez sentiu?
    Eu me levantei, a raiva me dando novo ânimo.
    - Ele me ama também. Martin sempre vai me amar - quando percebi que havia revelado seu nome já era tarde.
    Ela não me deteve enquanto eu caminhei, veloz, até a porta, os olhos novamente com lágrimas escorrendo.
    - Eu vim falar com o Ancião, não com uma de suas auxiliares.
    Só ouvi sua resposta quando já estava do lado de fora, a chuva caindo em meu rosto descoberto.
    - Eu não tenho auxiliares. Eu sou o Ancião.


Ano 5, dia 90
    Um ano desde que tentei me matar. Mais de cento e cinquenta dias que Aldo morreu. Quase cem dias desde que teoricamente me infiltrei na organização de Dantès.
    O ano 265 do antigo calendário iniciou sem que houvesse qualquer comemoração, pelo menos oficialmente. Nada foi dito formalmente, mas todos sabiam que comemorar o aniversário do dia que o primeiro humano pôs os pés em Norst poderia ser considerado subversivo.
    As comemorações oficiais foram feitas 90 dias antes, marcando o aniversário da data que a última nave espacial partiu do espaçoporto de Norylsk. Soldados desfilaram nas ruas, multidões aplaudiram, o povo clamou pela presença de Martin, mas ele não apareceu. Há anos ele não se arriscava mais a aparecer em público.
    "Dantès adoraria que ele se mostrasse ao público uma única vez mais", pensei comigo mesma, enquanto aguardava o elevador. Era um jogo de gato e rato que estava parado em um impasse, Martin temia por sua vida, Aldo estava morto, eu continuava seu trabalho, infiltrada na revolução dentro de uma revolução que Dantès havia criado. Alguém teria que fazer um movimento, forçar uma reação, um erro.
    Um calafrio me percorreu quando saí do elevador. Eu havia pisado neste prédio uma única vez, anos antes, em missão junto com Martin, a única missão que fizemos juntos. O antigo prédio do senado era agora a sede do novo governo. Martin estava bem aqui, bem próximo, apenas alguns andares acima. Tudo que eu queria era poder subir estes andares, poder finalmente revê-lo, mas a segurança jamais permitiria.
    - Tarith, que bom vê-la novamente. - Nary me recepcionou com um abraço e um sorriso, verdadeiramente feliz em me ver, após dispensar o guarda que me acompanhou do elevador até sua sala. - Tem certeza que é seguro vir até aqui?
    - Eu não fui seguida. Na verdade, quem me vigia é Nando, seu agente.
    - Eu sei, mas isto não impediu que pegassem Aldo. E agora que você está mais próxima de encontrar Dantès, nada nos garante que eles não coloquem mais pessoas vigiando você.
    - Por isto mesmo que eu precisava vir pessoalmente. Na próxima semana encontrarei Dantès, e nós não podemos perder esta oportunidade.
    - Você vai encontrá-lo? Tem certeza?
    Eu acenei com a cabeça. O interesse de Nary era visível. Em ação, era impossível discernir suas emoções, mas aqui, apenas nós duas, ela eriçava os pêlos só em pensar na possibilidade, como um gato ansioso para atacar sua presa.
    Ela começou a traçar planos instantaneamente, em sua maioria envolvendo uma ação suicida minha, uma bomba ou nano implantado em meu corpo, mas eu lhe disse que provavelmente seria examinada antes de chegar perto de Dantès. Ele era tão paranóico quanto Martin, Nando poderia lhe confirmar.
    - Você pode chegar perto de Martin a hora que quiser - eu disse, o ciúmes perceptível em minha voz - Dantès só tem ouvido falar de meu trabalho em sua organização, ele não me conhece e não vai confiar em mim.
    - Então você tem um plano melhor? - Ela por fim disse, a voz não escondendo sua irritação - você mesma disse que não podemos perder esta oportunidade.
    Eu então lhe contei meu plano. Era mais força bruta que sutileza, mas nós tínhamos a vantagem da surpresa e do número de soldados que poderíamos dispor. Iríamos cercar e atacar Dantès assim que eu conseguisse a confirmação que ele estivesse presente em um local.
    - Faça isto, Tarith, e Martin lhe será grato. Eu não posso prometer nada, ele tem - ela hesitou - ele tem questões com você, não posso explicar, você não entenderia, mas se fizer isto e sobreviver, eu tenho certeza que ele será grato a você.
    - A vida de Martin é a única coisa importante para mim - eu respondi com sinceridade. Ela me abraçou, e me disse que comandaria pessoalmente a operação.
    - Vou fazer de tudo para proteger você - foi a última coisa que ela me disse, quando me despedi.
    "É um jogo de gato e rato, entre Martin e Dantès", eu pensei novamente, ao sair do elevador. "Como foi entre Martin e os humanos. Como foi entre Martin e o Senador".
    Mais um calafrio me percorreu o corpo, enquanto me afastava do prédio que um dia pertenceu ao senado humano.
    O prédio de meu pai.


Ano 4, dia 106
    O que define uma pessoa? São suas memórias? Suas escolhas?
    E se suas memórias são falsas? Se suas escolhas foram feitas por outros? Então quem você realmente é?
    A chuva cai sobre mim. Isto é real? Quando eu lembrar da chuva, amanhã, vou saber que aconteceu? Ou vou me perguntar se esta memória também é falsa?
    "Você ama este Martin, não é? Isto significa que você se preocupa que ele esteja bem, que esteja feliz, correto?", Dhaly - a 'anciã' como ela repetiu sorrindo um sorriso irônico - me perguntou na segunda vez que visitei seu templo.
    Eu lembro de vômitar, a primeira vez que lembrei meu passado, meu pai morrendo a meu lado, morto por mim. Terá sido a única vez? Ou lembrei vezes sem conta de quem eu realmente sou, e tive tudo apagado novamente? A memória me faz vomitar de novo. Memória e realidade se misturam. Passado e presente.
    A chuva cai sobre mim e meu vômito.
    "Mas, se ele não está preocupado com sua felicidade, se ele a abandonou, tirou sua filha de você, e a deixou nas mãos de alguém que a machuca, como você pode dizer que ele também a ama? Pelo menos ele não ama da mesma forma que você ama, não é? Pois você jamais faria isto com ele", eu quase levantei indignada, mas seria meio ridículo fugir uma segunda vez, depois de ter voltado por minha própria escolha.
Isto foi há dez dias. Eu saí de lá, depois de horas conversando, dizendo para mim mesma que não voltaria mais.
    O vento e a chuva aumentam. Estou enxarcada. Uma pessoa passa e para um instante, mas então se afasta, acelerando o passo.
    "Então, você o ama porque ele a ajudou a se vingar de alguém que matou sua família? Diga-me, agora que você já se vingou, como você diz... quão feliz você está? No final das contas, a vingança não lhe deu a paz que você esperava. A vingança não vale realmente a pena, não é?", ela perguntou na minha terceira visita, sete dias atrás.
    A chuva lava o vômito. Eu começo a tremer e não consigo parar. Não é do frio.
    "Você me diz que se não fizer o que Martin mandou, se não obedecer a Aldo, não importa o quanto isto a machuque, Martin vai deixar de amá-la. Agora, por tudo que você me disse, lá no fundo, você realmente, realmente acredita que ele a ama? Ele a ama, mas a faz sofrer deste jeito?". Três dias atrás, minha quarta visita ao templo da anciã.
    Eu ouço passos. É ela, Dhaly. Ela me encontrou, ou me seguiu quando saí correndo do templo. Ela pára a meu lado.
    "Vamos fazer uma coisa diferente hoje, está bem?", ela me perguntou, uma hora atrás, talvez menos. Minha última visita. "você só tem falado de um tipo de amor, o amor desta pessoa, Martin, e não consegui ainda ver o que este amor lhe trouxe de felicidade. Então, quero que pense em algum outro amor. Você disse que amava sua família. Eu quero que lembre deste sentimento, não quero que lembre da tragédia que você disse que aconteceu, mas dos momentos felizes que teve com seu irmão, seus pais.", eu hesitei, e balancei a cabeça em um sinal de não, o coração acelerado, com medo.
    Ela insistiu. Eu fechei os olhos, menos de 1 hora atrás. Momentos felizes, só lembrar um momento feliz com minha família. Só isto. Não deveria ser difícil.
    Eu vomitaria novamente, mas meu estômago está vazio. Ela ainda está parada ao meu lado, também se molhando na chuva, mas sem nada dizer.
    Um momento feliz. Abraços do meu pai, meus olhos fechados, ele me pegando no colo, me contando histórias.
    Eu abri os olhos, na minha memória, e por um instante seu rosto estava lá, antes de desaparecer em uma escuridão. Mas foi só um instante que foi preciso.
    Meu pai.
    O senador.
    E eu o matei.
    Eu corri na chuva. Parei. Vomitei. Fiquei de joelhos, caída, chorando lágrimas invisíveis no meio da água que escorria de meu rosto. Nada disto traria meu pai de volta.
    Eu falo, pausadamente, os dentes rangendo, a voz alta apenas o suficiente para Dhaly me ouvir, enquanto uma paz toma conta de mim, e eu vejo tudo com uma clareza que nunca vi antes:
    - você me disse que a vingança não vale a pena, não é?
    Eu olho para ela, e ela dá um passo para atrás. Algo em meu rosto a pegou de surpresa, a assustou. E eu completo minha frase, enquanto me levanto.
    - você está errada.


Ano 5, dia 95
    Era uma armadilha. Sempre foi uma armadilha. Nunca houve um encontro com Dantès.
    Eu caminhei por entre os corpos, nos subterrâneos do metrô mais profundo da cidade de Norylsk, o piso escorregadio pelo sangue. No fundo de minha mente, uma criança chorava e dizia que isto era errado.
Nary estava em um canto de um tunel de acesso, sendo tratada pelos melhores médicos que pude dispor. Era muito importante que ela vivesse, do contrário todas estas mortes não serviriam para nada.
    Havia ferimentos por todo seu corpo, pelo menos um grave no pulmão esquerdo. O mais difícil não seria salvá-la, mas principalmente fazer com que parecesse que ela não ficou tão ferida, que conseguiu escapar junto com os poucos sobreviventes da força de elite de Martin que ela comandou.
    Ela viu eu me aproximar, seu rosto não mostrando nenhuma surpresa. Ela já teria adivinhado, ou estava apenas escondendo suas emoções? Não fazia realmente diferença.
    - Ola Nary. Quanto tempo, não?
    - Por quê? - sua voz fraca, um pouco pelos ferimentos, um pouco pelos remédios contra a dor. Eu me ajoelhei ao seu lado.
    - Eu lembro, Nary. Eu lembro tudo.
    Ela suspirou. A esta altura, creio que ela já tinha adivinhado. Era a explicação mais óbvia.
    - Eu sinto muito. Acho que é o fim para mim, então. - eu balancei a cabeça em um não. O pior é que eu realmente gostava dela. Um sentimento real, ou mais um efeito dos nanos em minha mente? Impossível saber.
    - Não, Nary. Não é o fim para você. Ainda não. Você vai fazer uma última missão, desta vez por mim.
Eu sabia como ela pensava, podia quase ver sua mente tentando adivinhar o que eu queria dizer, pensando em algo para ganhar tempo, me fazer falar meus planos. Eu a poupei deste trabalho.
    - Nos últimos meses, algumas das maravilhas tecnológicas humanas têm me fascinado, por motivos óbvios, como você bem sabe. Nanos para mudar um corpo... não seria difícil, agora, eu voltar a ser humana... nanos para manipular uma mente... é um pouco mais complicado, provavelmente eu precisaria, junto, de um longo acompanhamento psicológico, mas, em teoria, eu poderia quase voltar a ser como era antes de você me raptarem.
    - Meses... - ela falou, baixinho, a voz quase sumindo, quase perdendo a consciência.
    - Eu já tinha lembrado quem eu sou mesmo antes de Aldo morrer. Antes que você pergunte, a resposta é sim. Fui eu que o matei.
    Ela ficou em silêncio, provavelmente acreditando que era a melhor estratégia para me fazer falar mais.
    - Mas eu não quero falar de Aldo. Quero falar das maravilhosas tecnologias humanas. É uma pena, Nary, que não haja nenhuma que possa trazer meu pai de volta. E nenhuma que possa me devolver todos os anos que eu perdi. Sorte que pelo menos uma coisa realmente importante, estes nanos, estes maravilhos mini-robôs humanos, podem fazer por mim.
    Ela piscou. Certamente estava difícil continuar acordada, efeito dos nanos em seu organismo.
    - Os nanos que Martin usou foram muito sofisticados, devem ter lhe custado uma fortuna. Tão sofisticados quanto os que estão circulando pelo seu corpo agora.
    - Você acha que vai fazer eu esquecer quem sou? - falar era um esforço agora, cada vez mais próxima de perder a consciência. Engraçado, ela não iria lembrar nossa conversa, mas eu fazia questão de continuar.
    - Não Nary, isto não seria nada fácil. Você não é uma garotinha inocente e indefesa, para ser torturada e abusada e ainda achar que está sofrendo tudo por amor. Mas eu não quero mudar sua mente, alterar toda sua memória, nem quero brincar com você para me divertir, como Martin fez. Os nanos são para você fazer uma única coisa que vou pedir.
    Eu me levantei, sem saber se ela sequer ouviria o que eu tinha a dizer - Eu só quero que você mate Martin por mim.
    Eu já ia me afastar, quando ela falou, a voz mais alta do que eu imaginava, menos confusa do que aparentava antes. Minha Mary, sempre fingindo.
    - Você acha que este Dantès é melhor que Martin? Ele só está usando você para chegar ao poder. Só está fazendo a mesma coisa que Martin fez.
    - Nary, Nary, você realmente ainda não entendeu - balancei a cabeça enquanto falava.
    E eu dei um sorriso, sem nenhuma alegria.
    - Eu sou Dantès.


Ano 5, dia 96 - Epílogo
    - Martin está vivo - Jind veio me trazer a notícia. Ele e seus dois irmãos gêmeos trabalhavam para mim há meses, pela promessa que destruiríamos Martin e tudo que ele criou. Eles o odiavam tanto quanto eu, nunca descobri por quê.
    - Está confirmado?
    - Ele está na rede, neste momento, falando. Prometeu vingança, disse que vai encontrar e punir todos os envolvidos no atentado.
    - Nary?
    - Morta. Mas não temos detalhes ainda.
    - Ele escapou, então. Martin escapou - O som de seu nome, em minha boca, meus lábios, doce e amargo ao mesmo tempo.
    Racionalmente eu queria que tivesse funcionado, que tudo terminasse no primeiro lance. Mas meu sentimento não era de decepção. Era o oposto da decepção.
    Uma parte de mim ainda o amava, mesmo sabendo que era um amor artificial, criado por nanos em minha mente.
    - Melhor assim - eu disse, para surpresa de Jind - não poderia terminar tão rápido.
    - Só a morte é pouco - Eu falei, e Jind sorriu em concordância.
    Só a morte é pouco, meu Martin.

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