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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


A Vingança de Martin


Prólogo
    O sangue pingava da minha faca até o chão. O assassino agonizava.
    Não era apenas pelo golpe no coração que ele estava morrendo. Seu sistema de biodefesa teria estancado a hemorragia em segundos, mas a faca estava coberta de nanos, que agora mesmo percorriam seu organismo, atacando simultaneamente os pulmões e os músculos do pescoço. Ele não podia falar. Não podia respirar.
    Eu olhei ao redor. Martin caminhava da porta em minha direção, a boca aberta em um sorriso, os pelos eriçados, em especial na ponta das orelhas. Ele estava exultante, tanto quanto eu.
Tínhamos tempo, ninguém deveria vir até o escritório na próxima hora. As câmeras de segurança estavam desligadas e a rede já havia sido comprometida. Nenhum alarme iria soar.
    O assassino olhava para mim, sem nem prestar atenção a Martin, que se aproximava, o pavor nítido em seu rosto enquanto tentava respirar. Seu sistema biológico o manteria vivo por um longo tempo, mas sem oxigênio, isto apenas faria sua agonia se prolongar.
    Será que ele me reconheceria? Ou eu era apenas um rosto indistinto, apenas uma Gen como qualquer outra? Ele se lembraria do que fez com minha mãe? Meus irmãos? Ele saberia por que estava morrendo?
   - Você não me reconhece, não é? - Os olhos dele se arregalaram ao ouvir minha voz. Talvez ele não reconhecesse meu rosto, mas eu jamais esqueceria o seu. Bastaria eu piscar os olhos para vê-lo no dia que o conheci, no dia em que perdi toda minha família.
   Bastaria eu piscar os olhos e o passado se tornava tão nítido como se eu estivesse vivendo-o novamente.


Capítulo I - 5 Anos Atrás
    Eu era apenas uma criança de 11 anos quando eles vieram em seus flutuadores, deslizando acima das dunas, dispostos a nos levar novamente para seus campos de trabalho.
    Eu nunca havia visto um humano não alterado antes. Seus corpos estranhamente sem pelo, narizes deformados, orelhas curtas e arredondadas. Era tão estranho pensar que eles eram a matriz original, e nós que eramos uma manipulação, uma mistura com gens felinos e de outros animais de seu estranho mundo natal. Aos meus olhos, eles que pareciam uma versão distorcida de um Gen.
    - Eles nos criaram para trabalhar para eles - meu irmão, Sam, me disse dias antes, sua voz amargurada - para sermos seus escravos. Somos mais baratos e mais adaptáveis que qualquer máquina.
    - Mas não é justo - eu respondi. Ele respondeu que os humanos não se importavam com justiça. Naquele dia eu descobriria que isto era verdade.
   Como começou a carnificina, eu não me recordo. Lembro apenas de estar quase ao lado do assassino, o lider de todos eles, enquanto ele discutia com os anciões. Ele mentia sem nenhum pudor, dizendo que não iríamos ser forçados a trabalhar, que precisávamos sair de nossas terras, as terras que eles próprios nos deram como esmola, para nosso próprio bem.
    Naturalmente nós não acreditamos, nós sabíamos muito bem o que esperar. Sabíamos que era apenas uma questão de tempo até os humanos abandonarem seu falso sentimento de culpa e nos colocarem novamente a trabalhar como escravos. “Eles dizem que podem fazer o que quiserem conosco, pois foram eles que nos criaram”, meu irmão havia me dito.
    Foi algum acidente? Houve algum disparo de uma arma? Ou uma pedra atirada em raiva? Eu não sei, as imagens não eram lineares, não formavam uma sequência. Eram apenas cenas truncadas que ficaram registradas para sempre em minha memoria, de forma desordenada. Um corpo sendo arrastado, uma explosão, um Gen caído, pessoas correndo, gritando.
    Minha próxima memória foi de acordar em meio a uma pilha de cadáveres, minha cabeça sangrando de um ferimento, enauseada com o cheiro de carne apodrecida. Por algum motivo, pensaram que eu estava morta e me deixaram para trás.
    Eu revirei cada um dos corpos, procurando por minha mãe, pelos meus irmãos, procurando sem tentar encontrar, torcendo para que tivessem sido levados. Pelo menos minha irmã menor, minha pequena Pan, eles poupariam, não? Quem poderia fazer mal a uma pequena criança de 5 anos.
    Seu corpo foi o primeiro da minha família que encontrei.
    Não foi o último.


Capítulo II - 3 Anos Atrás
    Eu corria, enquanto pensava em como escapar. Se fosse pega portando nanodrogas, nunca mais me deixariam sair, não com minha ficha.
    Eu não tinha idéia do que era Norylsk, a Metrópole, a maior cidade do planeta. Não quando chequei, dois anos antes. Eu imaginava que era apenas uma grande aldeia, e que aqui eu aprenderia sobre os humanos e sobre como fazê-los pagar pelo que fizeram.
    Tola.
    Dois anos depois eu era apenas mais uma traficante viciada, revendendo nanodrogas humanas para meu próprio povo. Ajudando a nos manter escravos. Eu odiava a mim mesma.
    Foi enquanto ainda fugia, por entre as ruas do gheto, que o encontrei. Meu herói, meu amante, minha salvação. Martin.
    Ele me agarrou e me levou por dentro de uma porta, tapando minha boca para que eu não gritasse. Eu tentava escapar, mas ele era mais forte. Eu estava apavorada, não entendendo que ele estava apenas me protegendo. Tentei fugir, tentei gritar, enquanto ele sussurrava em meu ouvido para ficar quieta, até que os humanos perdessem minha pista.
    Ele por fim se viu obrigado a injetar alguma coisa em mim. Só sei que senti uma picada e então tudo ficou escuro.
    Os dias que se seguiram foram como um borrão, meus pensamentos confusos, um hospital, meu corpo queimando, incapaz de me mover ou abrir os olhos, perdendo a noção do tempo.
    - Sindrome de abstinência - Ele falou, e sua voz parecia ressoar por todo meu ser. Será que naquele primeiro instante, naquela primeira vez que ouvi sua voz, eu já estava me apaixonando, descobrindo uma nova razão para viver?
    - Está tudo confuso - eu falei, balbuciante. Não sabia onde estava, nem como havia chegado ali.
    -  Nanodrogas criam uma relação simbiótica com seu corpo, e, com o tempo, você não pode mais viver sem elas. Elas começam a auxiliar em várias funções vitais de seu organismo, e ao mesmo tempo interferem em seu cérebro. Em pouco tempo, seus pensamentos não são mais seus, são os pensamentos que os humanos querem que você tenha. Suas memórias não te pertencem mais. Nanodrogas são a forma perfeita de escravizar alguém.
    - O que aconteceu?
    - Estamos curando você. Limpamos seu organismo, mas sua mente ainda está confusa, se reorganizando. Vai levar meses até você voltar a ser você mesma.
    - Por quê? Quer dizer, por que você me curou? Por que eu?
    - Nós fomos escravos por tempo demasiado. Ninguém nunca mais fará de você uma escrava, Tarith. - Tarith, soava estranho... Tanto tempo desde que alguém me chamara pelo meu verdadeiro nome.


Capítulo III - 2 Anos Atrás
    - Nós aprendemos a vê-los como fortes, como superiores - no centro do auditório, um holograma de um homem. A voz de Martin cativante, dominadora  - olhem para o ser humano. Conheçam o inimigo, estudem-no. Quanto mais o conhecerem, mais vão descobrir que sua pretensa superioridade é uma fraude. Nós somos mais fortes, mais inteligentes, mais obstinados.
    Todos o ouviam extasiados. Como poderia ser diferente? A voz de Martin era indescritivel, seu carisma contagiante. Ele era um líder nato, e eu o amava desde a primeira vez que o vi. Só me faltava a coragem de revelar para ele.
    - Ele é incrível, não. - Eu disse para Nary, que estava ao meu lado. Ela sempre me acompanhava, desde que saí do hospital. Eu ainda tinha tonturas, momentos em que não sabia quem era, onde estava, mas eram cada vez mais raros. "Os nanos já sairam completamente de seu organismo", os médicos disseram, "mas levará um tempo até sua estrutura neural estabilizar".
    - Claro - Nary respondeu sem demonstrar grande emoção. Ela parecia não se deixar nunca contagiar pela emoção. E completou sem emoção: - Incrível.
    Martin, por sua vez, falava com uma voz cada vez mais emocionada.
    - Quando atacado em diversas frentes, o ser humano foge. Lembrem-se, enquanto nossos antepassados eram leões, tigres, os antepassados dos humanos eram macacos. Nós nascemos para ser predadores, eles para ser presas. Sermos escravos e eles feitores é uma inversão da ordem natural das coisas.
    As palavras de Martin eram um choque para muitos, e este era o objetivo. Tirá-los de sua letargia, mostrar que podíamos lutar, que podíamos ser livres.
    - O dia de nossa vitória está cada vez mais perto. Mais e mais humanos deixam nosso mundo. Cada ação de guerrilha, cada ato de resistência aumenta o custo de manterem sua força de ocupação.
    - Mas existe um risco - Martin continuou, a platéia atenta a cada palavra - os colaboradores, os traidores entre nós. Aqueles que acreditam nas mentiras do ser humano, que acreditam que querem a paz, que querem se redimir pelos anos de escravidão. Eles esquecem quantas vezes já nos deixamos enganar.
    Ao final da reunião, inúmeros anciões vem prestar homenagem a Martin. Ele é o lider escolhido, o nosso salvador, e eles reconhecem isto. Somente depois que todos vão embora, ele vem na minha direção.
    - E como está minha pequena Tarith? - ainda não conseguia acreditar que ele gastava tempo comigo. - Já está melhor?
    Eu concordei com a cabeça, emocionada demais para dizer qualquer coisa. Ele disse que desta vez ficaria em Norylsk por alguns dias, antes de partir novamente para o interior, e que gostaria de passar um tempo comigo.
    Eu não podia acreditar, meu coração acelerado. Martin, nosso lider, quase uma lenda, queria passar um tempo comigo.



Capítulo IV - Tempo Presente
    - Surpreso em nos ver, Senador Adam? Todos mudamos muito desde a última vez que nos encontramos pessoalmente, não é verdade - o assassino estava agora imóvel no chão, enquanto uma batalha era travada entre seu sistema de sustentação de vida e os nanos invasores. Martin se agachou a seu lado, enquanto falava.
    - Não pode falar, não é? Se pudesse, o que você diria? Pediria desculpas pelo que seu povo fez ao meu? Como se desculpas pudessem desfazer o passado, apagar décadas de sofrimento e exploração? - O assassino mal olhava para ele, os olhos fixos em mim. Fazia 5 anos desde que minha aldeia foi massacrada, será que ele se lembrava de meu rosto, depois de tanto tempo. Ou ele apenas não queria encarar Martin, enquanto vivia seus últimos minutos.
    - Ou então - Martin continuou - se pudesse, você pediria desculpas pelo que fez a mim? Faria isto senador? Pediria desculpas por me fazer acreditar que eu era igual a vocês, que eu era como seu próprio filho? Pediria desculpas por ter me abandonado?
    Eu olhei, confusa, para Martin. Sequer sabia que ele conhecia pessoalmente o assassino. Eu tinha um motivo pessoal para estar aqui, mas para Martin era apenas outro alvo legítimo, outro dos incontáveis humanos que persistiam em tentar nos submeter a seu domínio. Ou não?
    - Não estou entendendo, Martin. Você o conhece?
    - Ah, sim, nós nos conhecemos muito bem, não, senador? - Martin olhou para mim - eu era um órfão, meus pais mortos em um desastre no campo de extração de Kheel. O senador estava lá, na época ele era um auditor, supostamente enviado para investigar os motivos do acidente e punir os culpados. Mas ninguém foi punido, não é, senador? Nenhum humano jamais é punido, certo?
    - E o que aconteceu?
    - Eles me adotaram. - ele olhou novamente para o assassino agonizante - Eu era como seu filho, senador? Era o que eu acreditava. Que eu tinha o mesmo valor de um ser humano, que para você e sua esposa, eu pertencia a família. Não teria sido menos cruel me deixar no campo de Kheel? Não seria isto melhor que acreditar que eu tinha algum valor, apenas para me abandonar quando cansaram de mim?
    Sem receber resposta de ninguém, o assassino incapaz, eu sem saber o que dizer, Martin continuou sozinho a falar - Aposto que você pensou que nunca me veria novamente? Que eu poderia ser apagado de sua consciência, um animal de estimação que vocês abandonaram quando resolveram ter um filho de verdade?
    O assassino agonizava, imóvel, enquanto Martin revelava um lado seu que eu jamais conhecera.
    E o assassino continuava olhando apenas para mim.


Capítulo V - 1 Ano Atrás
    Algumas vezes eu percebia que falavam de mim, que mudavam de assunto quando eu chegava perto, principalmente aqueles que eram mais próximos de Martin, mas eu não me importava. Talvez não aprovassem nosso envolvimento, talvez achassem que eu era muito criança, ou que ele era velho demais para mim. Talvez mesmo tivessem medo que os humanos tentassem me usar para atingi-lo.
    Nada disso importava. Eu estava feliz, mais feliz do que jamais estive em minha vida. Éramos amantes, nos completávamos, e isto era tudo que importava para mim. Eu morreria por ele, sem hesitar, feliz por cada dia que ficamos juntos.
    Eu me entreguei a ele naquele mesmo dia em que o vi pela primeira vez discursando para seus seguidores. Ele tinha receio, disse que eu era jovem demais para ele, mas eu tinha certeza do que estava fazendo. Ele era minha vida, minha razão de existir.
    Mas eu precisava ser útil, mostrar para ele que não era apenas uma jovem apaixonada, mas também sua mais fervorosa seguidora na luta contra os humanos. Foi por isto que não deixei Nary em paz até que ela concordasse que eu a acompanhasse em uma ação.
    - Não entendo o que estamos fazendo aqui? - Eu olhava desconfiada para tudo ao meu redor, em especial para a Gen que nos conduzia por dentro de um labirinto de corredores. Minha memória de antes de me livrar das nanodrogas era bastante falha, mas acho que eu nunca havia estado em um lugar como este. Se estive, então fico feliz por ter estas memórias apagadas. Era uma casa de prostituição.
    - Eles atendem humanos ricos - Nary me disse, quando paramos atrás da porta para a qual a Gen nos conduziu - humanos que desejam ter uma relação às escondidas com uma mulher Gen.
    - E é um destes que está atrás desta porta?
    - Não, é algo muito pior - Nary então se virou para a Gen - Você fez um grande favor para a causa e para Martin. Na entrada do prédio há dois Gen vestidos com mantos pretos. Eles vão levá-la para um lugar seguro, você terá que ficar sumida por um tempo. - com um gesto ela mandou a Gen embora.
    - Pior em que sentido?
    Ela não me respondeu, apenas sacou uma arma e abriu a porta.
    O humano estava em uma cama, no centro do quarto, abraçado em uma Gen, uma jovem não mais velha que eu. Ele se levantou assim que entramos, e quando viu a arma, ergueu os braços.
    - Por favor, não atire, não é o que estão pensando. Eu sou Gen, sou Gen. - Ele parou de falar no instante seguinte, e caiu no chão, morto. A arma de Nary era silenciosa. A jovem na cama começou a gritar histérica.
    - O que ele quis dizer? - eu perguntei - Por que ele disse que era Gen?
    - Ele era. Um milionário Gen, que fez fortuna traindo sua raça. Alguns traidores fazem terapias gênicas para se tornar humanos. - Ela então virou a arma para o rosto da jovem que ainda gritava, e que no instante seguinte caiu na cama em silêncio. Os ferimentos da arma de Nary eram praticamente invisíveis, mas a morte era imediata.
    - Por que você atirou nela também? Nós viemos apenas atrás dele.
    - Ela dormiu com um humano.
    - Mas você disse que ele era Gen
    - Ela não sabia disto.


Capítulo VI - Tempo Presente
    Fazia mais de um ano que eu participava de ações pela causa quando Martin veio falar comigo sobre uma missão que faríamos juntos. Eu o via tão pouco, ele quase sempre em ações fora da cidade, que não o deixei falar enquanto ele não me levou para um quarto e fizemos amor. Nossos corpos saciados, ele me contou quem iríamos matar.
    O senador Adam. O nome me soava tão familiar, mas eu não conseguia identificar onde poderia ter ouvido, até que ele me revelou quem era. O assassino, o homem que massacrou a aldeia em que nasci. Naquela noite mesmo partimos para a missão, tudo estava planejado e preparado há semanas, pelo que Martin me contou, mas ele queria que eu participasse.
    Estranhamente, enquanto olhava o homem agonizar, não havia uma sensação de felicidade me possuindo. Pelo contrário. Enquanto Martin falava com o senador, ajoelhado a seu lado, eu ficava mais e mais angustiada olhando-o lutar para tentar respirar.
    - Martin, por que ele não para de olhar para mim?
    - Ele está tentando imaginar se sua suspeita pode ser verdadeira. Foi a voz, não foi, senador? O rosto mudou muito, é um rosto Gen agora, mas a voz é como você lembrava, não?
    - Do que você está falando, Martin?
    - Venha aqui, Tarith. - Eu estava até então em pé, a faca envenenada por nanos ainda em minha mão - venha aqui, sente-se ao meu lado e me beije.
    Era uma ordem, e eu obedeci.
    - O veneno é de ação lenta por uma razão. Nada poderia salvá-lo agora, sua morte é certa, mas eu fazia questão que ele vivesse o suficiente para saber quem o matou.
    - Você queria que ele soubesse que morreu por ter massacrado minha família.
    Martin riu. Então acariciou meu rosto com sua mão, e eu soube que nunca poderia sentir algo tão forte quanto o amor que sentia por ele. Ele se virou para continuar falando com o senador. O veneno provavelmente terminaria de matá-lo em mais alguns minutos.
    - Já tem certeza, senador, ou ainda está com alguma dúvida? O que acha de sua doce filha, agora? Ela continua sendo tão maravilhosa, tão humana, que não há mais espaço para mim em sua família?


Capítulo VII - Tempo Presente
    O vômito estava em minhas roupas, nos braços, e principalmente no piso a centímetros do meu rosto. Eu estava de quatro, joelhos e mãos no chão. Meu estômago continuava tentando expulsar alguma coisa, mas já estava vazio.
    "Nanodrogas interferem em seu cérebro. Elas são a forma perfeita de escravizar alguém".
    Eu tentei pelo menos levantar a cabeça, e tudo começou a girar.
    "Alguns traidores fazem terapias gênicas para se tornar humanos"
    A faca ainda estava em minha mão, a ponta também suja de vômito. Quanto tempo? menos de um minuto, menos de um minuto que meu mundo acabou.
    "Em pouco tempo, seus pensamentos não são mais seus"
    Eu virei o rosto. Martin sorria, a dois passos de mim.
    "Suas memórias não te pertencem mais"
    Ele me olhava, os lábios agora roxos, a morte finalmente conquistando seu sistema interno de vida. Ele. O assassino. O senador.
    Meu pai?
    "ele sussurrava em meu ouvido para ficar quieta, até que os humanos perdessem minha pista".
    Eu fechei os olhos e tentei me lembrar de minha irmã, mas só existia uma única cena dela em minha recordação, uma cena de um corpo de criança. Meu irmão? Apenas uma fala, um voz dizendo que os Gen foram criados para ser escravos.
    E então uma imensidão de imagens desabou sobre mim.
    Meu pai, segurando minha mão, me dizendo que iríamos em uma aldeia, tentar convencer os habitantes a sair de uma zona radioativa, na qual foram levados depois de serem libertados de uma mina. Uma mão tapando minha boca, enquanto eu tentava desesperadamente me soltar e gritar, vendo os seguranças se afastarem, procurando por mim na direção errada.  Meu rosto em um espelho. Um rosto humano, não Gen.
Eu vomito bile.
    - Ele morreu. Venha, vamos para casa, vai ficar tudo bem.
    Ele se aproximou, e tocou com a mão em meu ombro. Por um instante, tudo pareceu desaparecer, toda a confusão, e uma sensação de amor, de paz, percorreu todo meu corpo. Martin estava me tocando, e tudo ficaria bem.
    Eu me virei, a faca acompanhando minha mão, a ponta se cravando em seu abdomem.
    Seu punho acertou meu rosto. Eu caí, o rosto se chocando com o chão, os olhos fechados.
    Eu matei Martin, eu matei Martin. Meu pai estava morto, morto por mim, e tudo que parecia ecoar em minha cabeça era o nome de Martin.
    - Não se preocupe, querida - a voz dele, tranquila - achei que você não reagiria assim, mas por via das dúvidas, os nanos da faca estão ajustados apenas para humanos. Como eu disse, tudo vai ficar bem.


Epílogo - 1 Ano Depois
    A última nave humana partiu do principal espaçoporto de Norylsk. A cidade festejava.
    Eu olhava da janela de meu quarto. A mão em minha barriga, sentindo o bebê se agitar dentro de mim.
    Tudo que eu queria é que ele estivesse aqui, comigo, mas eu sabia que agora, assumindo oficialmente a posição de lider máximo de nosso povo, ele teria ainda menos tempo para mim.
    Não importava, eu não era importante, ele sim, e nosso povo precisava de sua liderança.
    Ele. Meu amor, meu amante, minha vida.
    Martin.

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